A imprensa brasileira é refém de si mesma, de um modelo baseado nas ações rápidas e quase sempre rasteiras em busca de audiência e repercussão. Desde os blogueiros e comentadores de televisão que não resistem a frases de efeito, mesmo que suas construções representem a demolição do bom senso, até as decisões editoriais que priorizam o espetaculoso e o rumoroso.
Tem sido assim na cobertura das campanhas eleitorais nas capitais mais importantes, e assim foi no acompanhamento da tragédia anunciada que culminou com a morte da jovem E.C.P.M. O acompanhamento do noticiário online que seguiu o desenrolar dos acontecimentos no conjunto habitacional de Santo André revela que os jornais não tinham, ou desprezaram, um manual de Redação.
Desde a necessidade de cuidado extremo com informações que possam colocar a segurança de pessoas em risco, citada no Manual de Redação da Folha de S.Paulo e nos de outros jornais, até a recomendação de evitar a morbidez e a "curiosidade malsã" do público nas notícias de catástrofe e violência — recomendação do livro Ética para Periodistas, de Maria Teresa Herrán e Javier Darío Restrepo —, praticamente todas as boas medidas foram deixadas de lado na corrida pela visão mais espetaculosa e pela versão mais recente dos fatos.
Até mesmo de uma comentadora de fofocas de celebridades, caso da jornalista Sônia Abrão, que já teve melhores momentos quando trabalhou num dos diários do Grupo Folhas, era de se esperar que tivesse o bom senso de evitar ceder holofotes para o jovem desvairado.
Àquela altura, quando a jornalista — sim, ela é jornalista com vasta experiência na imprensa escrita — colocou no ar, pela RedeTV!, a entrevista do rapaz, ele ainda ouvia ponderações dos negociadores da polícia. A partir dali, e com a seqüência de outras entrevistas, ele claramente se colocou numa atitude superior aos interlocutores, o que prejudicou o diálogo e ajudou a conduzir ao desfecho trágico.
Cenários de guerra
Não foi apenas isso. Como, claramente, o criminoso e suas vítimas tinham acesso às transmissões de rádio e televisão, tudo que foi dito — das especulações de repórteres à profusão de "análises" mais ou menos especializadas de psicólogos, sociólogos e astrólogos ávidos por publicidade — podia ser ouvido no interior do cativeiro. Nem o mais arguto conhecedor da natureza humana poderia assegurar o quanto essa exposição poderia afetar o estado do jovem, que já dava sinais de estar alucinando.
A imprensa interferiu dessa forma nos fatos, o que é absurdo e inaceitável, e também condicionou as decisões do comandante da operação de resgate. Uma das razões alegadas pelo coronel Eduardo José Félix para usar atiradores especializados para — no jargão policial — "neutralizar" o criminoso, foi a percepção de que a imprensa condenaria tal atitude. Assim, por mais controversa que viesse a ser, essa medida deixou de ser considerada, justamente por ser controversa.
Desde que a legislação transferiu para o tribunal do júri os casos de mortes em ocorrências policiais e passou a impor cursos de reciclagem para os agentes civis e militares envolvidos em tiroteios, a polícia paulista evita ações drásticas quando há testemunhas. De qualquer modo, pode-se afirmar que faltou autoridade à maior autoridade presente aos acontecimentos, porque o coronel da Polícia Militar estava condicionado às conseqüências políticas de suas decisões.
A cobertura não foi apenas invasiva, espetacularizada, amadora e irresponsável. A imprensa continua omissa, ao aceitar passivamente a versão oficial e ao deixar de colocar em discussão o tipo de operação que costuma ser mobilizada em ocasiões como essa.
Já está mais do que em tempo de se colocar em debate público as estratégias de segurança adotadas no Brasil, a maioria delas inspirada em cenários de guerra e nos procedimentos desenvolvidos pelas forças de segurança americanas e israelenses. Se a chamada "inteligência" da Polícia Militar deu sinais de desinteligência, a imprensa dita séria se tornou refém da mídia de entretenimento, colocando-se voluntariamente no cárcere privado da irresponsabilidade.
Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
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