A pedidos coloco aqui a matéria publicada sábado no Diário de Natal. Mostra aí como passei meu natal. E pior: como passam centenas, milhares de indigentes invisíveis aos olhos do poder público ou da sociedade. As histórias e ameaças a este repórter falam por si:
O submundo das ruas esconde realidades distantes da estrutura familiar tradicional. O torpor causado pelo consumo de drogas é quase premissa para suportar a sobrevivência desumana. “Pra sobreviver da rua eu arrombo, vendo meu corpo, faço meus role (sic)”. A frase é de um morador de rua visivelmente drogado. Chegou a ameaçar o repórter e a fotógrafa. Perambulava pelo Centro da Cidade na noite de natal quando um grupo de jovens da igreja se aproximou para doar alimentos e vestimentas. A reação foi semelhante à maioria dos pedintes: pedir dinheiro ou reclamar da pouca doação.
O grupo de jovens é coordenado pelo monsenhor Agnelo Dantas, responsável pela paróquia de Nossa Senhora da Apresentação (antiga catedral). Há 12 anos consecutivos eles se juntam para realizar o Natal Solidário. Colhem doações durante um mês para distribuir na noite natalina entre moradores de rua. Saem a pé da antiga catedral e percorrem ruas do Centro, da Ribeira, Rocas e chegam até a comunidade do Maruim. Além de alimento, roupas e presentes, doam também uma mensagem solidária. E no percurso, encontram uma periferia invisível aos olhos do poder oficial e da maioria dos cidadãos.
Os jovens se reúnem após a missa realizada às 22h30. As doações ficam guardadas em compartimentos da igreja. Neste ano a arrecadação foi considerada boa. Só de pães foram 1.370, com ajuda de um panificador amigo do padre. Outros 70 pacotes de bolacha, refrigerante e roupas. Os brinquedos haviam sido doados a hospitais de caridade. E outra leva das doações foi distribuída entre flanelinhas no dia 21, em confraternização também tradicional da paróquia. As irmãs do Patronato, responsáveis pela catequese e assistência da comunidade do Passo da Pátria e Areado também receberam uma parte.
Antes de saírem, há uma reunião em frente ao altar da igreja. Um dos fundadores do Natal Solidário, o farmacêutico Tiago Vieira divide o grupo em dois. O primeiro percorre as ruas do Centro. O segundo, as Rocas e Ribeira. Os homens precisam estar em número equiparado porque “é muito perigoso”. Em seguida, o padre Dalmário de Melo ressalta o sentido da ação: “A solidariedade é filha da virtude chamada compaixão. Se não houver compaixão, vira assistencialismo, pena. E não fomos convidados por Deus para ter pena de ninguém, mas para tomar para si a dor do outro. Isso é compaixão”.
O irmão do padre Dalmário, o estudante de Direito, Tiago de Melo tem opinião diferente das demais: “A fome tem pressa, como disse Martin Luther King. Mas porque não fazemos isso por um período longo? As pessoas não passam fome apenas no natal. Dessa maneira, incentivamos uma cultura de acomodação. Se não oferecer capacitação, só há dois caminhos para essa gente: ou vira marginal ou pedinte. O poder público e a sociedade precisam promover a inclusão intelectual, institucionalizar essas pessoas para que possam ganhar o seu sustento”, opinou.
São quase 1h quando os dois grupos ganham as ruas. O da Ribeira segue a pé com a retaguarda de um automóvel para levar as doações. O do Centro leva tudo em um carrinho de supermercado e um desses carrinhos usados por catadores de lixo, mais o auxílio de uma bicicleta com duas cestas acopladas. Os pontos mais críticos são a Praça Cívica, a Rua João Pessoa, no Centro e a comunidade do Maruim. Todos os anos há uma contabilidade de pessoas assistidas. Nos 12 anos da ação, o número caiu, segundo Tiago Vieira. Quando o grupo volta são quase 4h. A cada ano, cerca de 300 pessoas são recepcionadas pelo Natal Solidário.
No final, todos ganham
Monsenhor Agnelo foi enfático durante o sermão: “O Natal Solidário doa para colher em troca”. Esse é o pensamento geral dos jovens da Pastoral da Juventude, responsável pela ação. “É exatamente nesta ocasião que Deus se revela no sentido do natal. Na verdade, nós recebemos o presente. Vemos cenas que marcam o nosso coração. Olhares que nos penetram e que partilham a vida conosco. É impossível olhar no rosto destas pessoas e ficar indiferente à felicidade que brilha em seus olhos”, afirmou a estudante Thaísa Rafaella, de 21 anos. Muitos participantes levam a namorada ou parentes juntos. Outros preferem a companhia do gesto solidário ao da família. O sentimento em comum é um só: a satisfação.
João é nome fictício. Podia ser João Ninguém da Silva. Tanto faz. Ele é invisível à sociedade. Tem 32 anos. Vive na rua há “muitos”. Tem aparência boa, roupa limpa e olhos e linguajar tomados pela droga. “João” confessou que sobrevive de arrombamentos e da venda do corpo. Quando o grupo ofereceu roupas e alimento, ele preferiu dinheiro. “Mermão (sic), estou há três dias aqui na rua. Não tenho onde dormir, me arruma aí 80 centavos”. Padre Dalmário sugeriu ele procurar a comunidade Shalon, em Petrópolis. João achou perda de tempo. Depois, ameaçou quebrar a máquina da fotógrafa.
A família de João mora no Vale Dourado, Zona Norte. “Prefiro a rua porque sou viciado”. Segundo ele, já passou por Maceió, Rio de Janeiro e Recife. “Voltei porque lá a barra é mais pesada”. Em Natal, João “se vira”. Com o dinheiro conseguido nos roubos e na prostituição, até dorme em pousadas às vezes, compra roupa de grife. “Você ta vendo a aparência boa aqui, mas tu num sabe o que eu passo não”. E em seguida, ameaça o repórter: “Agora é xeque-mate. Ta ouvindo não? É xeque-mate, barão. Dispara que é melhor pra você”.
“Queria uma clínica com religiosidade”
O presente de natal do morador de rua David Lopes da Silva foi uma surra de cacetete logo cedo. Pastoradores de casas do entorno da Praça Pedro Velho (Cívica) têm esse costume vez ou outra. “Nem polícia bate na gente; só eles. Acordamos debaixo de porrada sem saber o porquê”, reclama. David, 24 anos, foi o único ali a conversar com a reportagem. João, outro morador, só falava em troca de dinheiro para fumar “baseado”, e também ameaçou a equipe após a fotógrafa registrar o ambiente em que vivem há anos.
David mora na Praça Cívica há 8 anos. Segundo ele, foi expulso de casa devido às drogas. “Não tenho coragem de voltar porque roubo tudo e vendo para comprar droga”. A família mora na Zona Norte. “Vive bem. Todos trabalham. Devem estar curtindo a ceia de natal”, diz. A dormida é rente ao Ginásio Djalma Maranhão. O café da manhã ele consegue pedindo de casa em casa. Segundo David, um restaurante próximo oferece almoço gratuito por volta das 15h. O banheiro do supermercado mais próximo, distante cerca de 200 metros, ou terrenos baldios é usado para as necessidades íntimas.
Ao contrário de outros moradores que reclamaram dinheiro em vez de alimento ou queria sempre mais diante do carrinho repleto de doações, David agradeceu o panetone, a camisa e pediu “uma clínica com religiosidade”: “Queria um curso, um trabalho para poder fazer uma família e ser atualizado com o mundo. E também uma clínica com religiosidade, com pessoa pra olhar pra você e dizer que você está transformado, porque sou dependente químico, como todos aqui. Mas ninguém olha pela gente”.
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