segunda-feira, 29 de março de 2010

4 anos de um sertão cultural


Há exatos quatro anos, Oswaldo Lamartine atirava no peito e matava um pedaço importante da cultura potiguar

"Essa página bem poderia estar empoeirada ou melada de um barro molhado que moldou a personalidade de um sertanejo nato. Numa hipótese mais utópica, essa página poderia voar solta e perdida entre os chãos arenosos do Seridó potiguar; lá para as bandas de Serra Negra do Norte, onde nasceu um doutor com diploma de sertão, chamado Oswaldo Lamartine". Estas foram as frases iniciais da última matéria publicada neste Diário de Natal com Oswaldo Lamartine, meses antes de atirar em seu desgosto e ter matado 88 anos de sertão, há exatos quatro anos. Foi sua última entrevista publicada na imprensa.

Há projetos em curso para confecção de livros a respeito do sertanista e da obra de Oswaldo Lamartine - escritor elogiado por José Lins do Rego, Gilberto Freire e considerado por muitos o segundo maior intelectual potiguar, atrás daquele que talvez seja o primeiro do país: Cascudo. O editor da Editora Sebo Vermelho, Abimael Silva tem o projeto da reedição do livro Conservação de Alimentos no Sertão do Seridó, prometido para o fim de 2009.Segundo Abimael Silva, Lamartine deixou o material e instruções de como desejaria ver a capa. O sebista-editor disse ainda que está em processo um livro-coletânea de textos alusivos à figura de Oswaldo Lamartine publicados na imprensa.

Antes do fatídico 29 de março de 2006, Oswaldo Lamartine havia aberto as portas de seu flat, situado em Petrópolis, para receber o repórter. Em papo informal de despedida, confessou: "Rapaz, só estou esperando a morte, que não chega; a caetana". Mas a lucidez do escritor impressionava. Talvez por isso enxergasse uma modernidade indesejada, destruída pelo progresso infame.

Passaram-se alguns meses após aquele encontro. Sua fonoaudióloga cobrava nova visita com o argumento infalível do pedido de Lamartine para novo encontro, mesmo que sem entrevista, apenas para conversar, impossibilitada pela pressa cotidiana.

A única visita feita é de surpresa, numa quarta-feira à tarde. Iniciava-se o segundo tempo do jogo de futebol da seleção brasileira contra a Noruega, pela Copa do Mundo. A enfermeira que o acompanha diariamente, durante as manhãs e tardes aponta o quarto onde está o escritor. Nem bem aponta, Oswaldo grita um "pode entrar" contido. É que há três anos havia sido operado e naquele momento sofria dificuldades de deglutição e de fala. Os pigarros foram constantes.

O escritor vestia roupas leves. Após um aperto de mão firme que contrariou o aparente corpo magro e debilitado em função da doença, ele se desculpou por receber o repórter daquela maneira: "um lixo hospitalar". Pareceu contrariado pela impossibilidade de proporcionar a recepção característica dos sertanejos.

Após pouco mais de 30 minutos de entrevista, a última pergunta foi uma sentença descrente: "Sei que a pergunta é complexa. Mas o que é o sertão para o senhor?". E a resposta veio espaçada: "Ô meu filho... (longa pausa). É um mundo que se foi".

Oswaldo Lamartine morreu de tristeza, de saudade de sua Acauã; de seu sertão. Fez lembrar outro potiguar ilustre: Djalma Maranhão. Ambos morreram exilados. O eterno prefeito morreu de saudades de Natal, exilado no Uruguai pela ditadura militar.

Em um aspecto os dois se distinguiram. Djalma teve um enterro à altura de sua importância. Milhares de pessoas cercaram o Cemitério do Alecrim em uma das cerimônias fúnebres mais populares da história de Natal. O velório ou enterro de Oswaldo Lamartine foi ao seu jeito: simples, discreto, longe da relevância que foi como intelectual, como escritor, etnólogo, sertanista, pesquisador; como homem simples.

Lamartine soube enxergar alguns segredos da vida. Daqueles mais segredáveis, reservados aos de sabedoria, não aos de conhecimento. Coisa para quem soube vencer as forças inexoráveis do progresso e não se deixou tragar pela atmosfera invisível e nervosa da metrópole.

* Matéria publicada hoje no Diário de Natal

3 comentários:

  1. Oswaldo é daqueles que a gente se obriga a beijar as mãos, os olhos e o chão do seu pisar. Quem pensa que a nossa literatura é apenas o esgoto,farta-se da água limpa de Oswaldo. Ele não é segundo de nada. É primeiro de tudo. Gavião pace, pairando feito condor sobra as cabeças do sertão. Rodilha de cascavel, antídoto de pinhão. Com seu olhar de grota rindo das teorias dos feitores de textos de quem se envergonha de ser daqui. Oswaldo não tinha saudade de Dublin. É o Sertão das letras que sente saudade dele. O resto...

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  2. Com atraso,
    o meu abraço de felicitações pelo texto.

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