terça-feira, 13 de julho de 2010
Do Mestre Lucas e entrevista com Deífilo
Mestre Lucas, do Congo de Saiote de São Gonçalo do Amarante morre semanas depois da romanceira Militana
Menos de um mês da morte da romanceira Militana Salustino, São Gonçalo do Amarante amarga a morte de outro ícone da cultura popular da cidade. Lucas Teixeira de Moura morreu na noite de domingo aos 89 anos, vítima de acidente vascular cerebral. De acordo com familiares há dois meses ele sofreu o primeiro AVC e desde então recebia acompanhamento médico. No último dia três deu entrada no hospital Walfredo Gurgel onde ficou internado. O mestre foi homenageado durante a missa de corpo presente realizada no Teatro Municipal. O enterro foi às 16h de ontem no cemitério público de São Gonçalo do Amarante. Mestre Lucas iniciou suas atividades aos oito anos de idade com os caboclinhos de Milharada, atuou como Contra-Mestre do Boi Calemba de Pedro Guajiru, dançou Fandangos e Bambelô e por último comandava os Congos de São Gonçalo.
Em abril de 2009, o Diário de Natal esteve na humilde casa de Mestre Lucas, antes da visita agendada à casa de Dona Militana. A ideia era promover o encontro dos dois, junto com o folclorista Deífilo Gurgel, que acompanhava a equipe. O que parece sina impediu o encontro histórico. O mestre reclamou de “canseira” nas pernas e da catarata no olho. Apesar do físico ainda forte e da memória sã, Lucas preferiu o (des)conforto do lar – uma casa pobre à margem da principal avenida do município, enquanto aguarda amparo do poder público ou a então regulamentação da Lei do Patrimônio Vivo que não o contemplou a tempo.
O Congo de Saiote é manifestação popular herdada dos escravos africanos brasileiros. Não há registros de grupos semelhantes na África. A dança era incentivada pelas autoridades para manter a ordem nas senzalas. É que os negros se confortavam em assistir seus reis coroados nas congadas. Há várias vertentes do Congo praticadas de Norte a Sul do país. O de Saiote reúne elementos temáticos africanos e ibéricos, transformados em cortejo real. Costumava animar festas em louvor à Nossa Senhora dos Rosários. A encenação teatral unida à dança retrata uma cerimônia de coroação de reis escravos. Outro grupo autêntico no Estado para este folguedo é capitaneado pelo mestre Correa, na Vila de Ponta Negra, em Natal. É o Congo de Calçola.
Mestre Lucas comandava esta vertente de congada em São Gonçalo até 2008. Os problemas de saúde aliado à falta de interesse dos jovens paralisaram as apresentações do grupo. O irmão Sérvulo, antigo embaixador e contramestre, tentou dar prosseguimento, mas também fracassou com problemas de saúde. “Ainda tentei arrumar pessoal de Santo Antônio, mas não consegui. Imaginei ainda fazer um Congo só de menino de uns 12 anos, mas ninguém quis. Hoje não tem ninguém. Passei cinco anos ensinando os brincantes a cantar. Ninguém aprendeu. Sabem nem pra onde vai. Eu mesmo nunca me esqueci de nenhuma”, disse Lucas à época.
Ao todo são 25 jornadas cantadas pelo Congo de Saiote, algumas de longas estrofes. Contam a história da batalha do rei Henrique Cariongo para libertação dos escravos no Congo. Seo Lucas sabe decorado todas elas. Está tudo gravado por Deífilo Gurgel. A herança destas congadas foi repassada pelo quase lendário João Menino, responsável pela apresentação mais comovente aos 82 anos de Deífilo Gurgel, aplaudido de pé no Teatro Alberto Maranhão. João Menino morreu em 1978. Até então Lucas também brincava como contramestre no Boi Calemba de mestre Atanásio, também em São Gonçalo. É figura rica de conhecimentos da chamada cultura popular. No início da década de 80 comadou o Congo até o ano passado.
Mestre de congada em Ceará-Mirim
Um Congo de Saiote menos autêntico, mas também importante na arte da preservação das tradições ancestrais é praticado em Ceará-Mirim. Foi levado pelo negro, ex-cativo Pedro Mascenas. Chegou de Fortaleza, no fim do século 19. O grupo se apresentava de saia, blusão, gorro de papelão na cabeça e enfeites de cordões de cota no pescoço. Em pouco tempo se espalhou pelo vale do Ceará-Mirim, sob a tutela do mestre João José da Rocha, operário e agricultor do Engenho Guanabara.
Após desistência do mestre, o substituto - o filho - veio tempos depois, em 1934: Sebastião da Rocha, ou mestre Tião, hoje com 96 anos, resgatou o folguedo com o nome de Congos de Guerra - homenagem aos soldados constitucionalistas nos idos da década de 30, sempre acompanhado pelo fiel escudeiro, João Baracho, hoje com 80 anos. A mudança na essência da congada causou perda na autenticidade do folguedo, ainda preservado no Congo de Saiote de São Gonçalo ou no Congo de Calçola da Vila de Ponta Negra.
ENTREVISTA - DEÍFILO GURGEL
“Grupos do RN precisam de ajuda”
Além de Dona Militana temos grandes mestres do folclore potiguar vivendo à míngua. O que pode ser feito? A Lei do Patrimônio Vivo seria uma solução?
Temos muitos, como o Congo de Calçola do mestre Zé Corrêa, na Vila de Ponta Negra. Mas o Congo mais bonito que já vi no Rio Grande do Norte foi de São Gonçalo do Amarante. É lindo eles dançando, com saiotes brancos rendados. Mas esse o mestre João Menino - outro mestre espetacular - morreu. Os dois guias se desentenderam e um acabou com outro. Ainda fazem uns Congos, mas não mais na Sombra, lugar de origem perto de Uruaçu, onde tem o monumento dos mártires. Levei o grupo para dançar no TAM. Foi um sucesso estrondoso. A maior ovação que já assisti no TAM; uma coisa incrível.
E a Lei do Patrimônio vivo, de autoria do deputado Fernando Mineiro que deveria assistir a estes mestres e grupos?
Não entrou em vigor. É uma pena. Pelos conhecimentos que tenho o folclore do RN é o mais bonito e perfeito do Brasil. Temos o Bumba meu Boi do mestre Antônio da Ladeira, de Santa Cruz. Tem outro Boi bom, em Pedro Velho, no Distrito de Cuité, comunidade Quatro Bocas. Eles são tão primitivos que quando se apresentam, Mateus e Birico vão à frente do grupo levando lampiões de querosene acesos, numa espécie de varas, como faziam antigamente quando dançavam no mato sem iluminação. Tem ainda hoje o grupo Trapará, pros lados de Macaíba e São Gonçalo. Tem o Fandango fenomenal de Canguaretama. E a Chegança, em Barra do Cunhaú que merecem atenção especialíssima. Para se ter idéia da importância, esses dois grupos seriam os primeiros indicados pela Comissão de Folclore para serem beneficiados com a Lei de Mineiro. Ou basta dizer que tempo desse vieram dois folcloristas brasileiros só para ver esses grupos; fizeram documentação, e hoje estão lá sem maiores estímulos. Não sabemos até quando resistem. Vivem de migalhas salariais. O diretor da Chegança, Valdemir Marques é humilde, mas de uma sabedoria impressionante. São três horas de apresentação e ele sabe todas as cantigas. Talvez sejam os únicos do RN. E nas condições de beleza e fidelidade às tradições, são os únicos do Brasil. Temos ainda a Lapinha - acho que a única - em Barra de Maxaranguape, de Dona Moça. E o Caboclinhos de Ceará-Mirim, de mestre Birico.
Isso entre os autos. E entre as danças?
Tínhamos o Bambelô, em Natal, dançado na Avenida 4, de mestre Severino Guedes, mas esse acabou. Tem o Manelo Pau, no Alto Oeste. O Côco de Roda, em Canguaretama. Em São Gonçalo há grupo tradicionalíssimo com o Espontão. Temos ainda o Bandeirinha, em Touros, e o Capelinha de Melão, em Caraúbas, que se apresentam no São João, além do Araruna daqui. São grupos e mestres que merecem melhor atenção.
* Matéria publicada hoje no Diário de Natal, aqui, com o plus da entrevista de Deífilo Gurgel publicada no jornal em abril de 2009.
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