segunda-feira, 23 de agosto de 2010

E o velho DN começa a ser demolido...


Um futuro enriquecido pelo passado

Imagine aí Hebe Camargo novinha em folha no palco de um auditório pequeno em Natal, em plenos anos 50. Ou Orlando Silva cheirando cocaína armazenada na unha, durante os ensaios para a apresentação. Sob os mesmos holofotes, Jerry Adriani enlouquecia as fãs na saudosa Jovem Guarda, ou Nelson Gonçalves ecoava seu vozeirão para uma platéia cativa e elitizada, acomodada ali, naquele pequeno auditório situado no início da Avenida Deodoro. O prédio situado em Petrópolis, que até fevereiro deste ano abrigou grande parte da história do Diário de Natal, guarda um pedaço da vida cultural da cidade. E que nos últimos dias começou a ser demolida.

O futuro vem sempre amparado no alicerce do passado. E o Diário de Natal construiu históricos 70 anos até alcançar a modernidade da nova sede. Retrocedendo a fita do tempo, emerge uma época preta e branca de pioneirismos, ideologias e vitórias. Desde a Rádio Educadora de Natal (REN) – palco para apresentações dos sucessos nacionais e atrações internacionais da época – até o Cine Poti e a redação de jornalismo dotada da primeira máquina Off-Set do Rio Grande do Norte, repetida somente mais de dez anos depois em outras redações da cidade. E toda essa história tem um cenário...

A paisagem era bucólica. Pela Avenida Deodoro passavam os bondinhos. Natal vivia uma época saída da Belle Époque francesa cujo principado era comandado pelo jovem Cascudo. Os muros da província ainda eram baixíssimos... Uma casa típica das antigas residências alpendradas, ainda vistas no interior, chamava a atenção naquela avenida cercada de terrenos baldios e casas da elite natalense. Seria ali, em 1941, a sede da Rádio Educadora e o início de uma história midiática que acompanhou os ditames da modernidade de suas épocas até migrar para um novo espaço, respondendo à sua história de vanguarda.

A Rádio de muitas histórias
O prédio da Deodoro foi construído para abrigar a Rádio Educadora de Natal, pioneira à época. Desde o início – e pelos próximos 36 anos –, a REN assistiria a presença da rouxinol potiguar, Glorinha Oliveira, hoje com 83 anos. Nas lembranças remotas, o auditório pequenino frente ao palco suntuoso, capaz de abrigar uma orquestra sinfônica. À época, o analfabetismo tomava a maioria da população natalense. O acesso aos bens culturais era restrito à elite pouco numerosa, abastecida pelas atrações da REN.

“Vi Hebe tão magrinha, morena, do cabelo curtinho. Ela se apresentou junto ao pai, que tocava violino... As maiores atrações nacionais se apresentaram lá. E também alguns internacionais. Foram tantos... Lembro de Los Mexicanitos, a Orquestra Cassino de Servilha...”. E Glorinha Oliveira também se recorda de Orlando Silva cheirando cocaína durante os ensaios, antes da apresentação. “Ele guardava a droga na unha. Não sabia o porquê de cheirar o dedo. Só depois me disseram o que era”, lembra.

Outro episódio tragicômico foi a queda da cantora Isaurinha Garcia do palco, completamente embriagada. “Ela estava tão bêbada que quando segurou o microfone, posto naqueles pedestais antigos, tombou pra frente e caiu sobre o auditório já na primeira música. O show foi logo suspenso”. Nessa época, Glorinha conheceu os maiores artistas nacionais e também alcançou o sucesso no eixo Sul Maravilha. O único lamento foi a ausência de Cartola no palco da REN. “Esse não se conseguiu trazer de jeito nenhum”.

Cinema Paradiso
Naqueles anos antecedentes à chegada da televisão (logo depois do final da Segunda Guerra Mundial), o cinema era fascínio. No fechar das cortinas dos shows da Rádio Poti, (inaugurada em 1946 em substituição à REN), o projecionista Nilton Marcolino iniciava o começo do sonho. A tela era a parede do palco. A sala pequena, situada no alto do prédio abrigava praticamente a máquina de projeção e seu condutor. Ao meio dia, recebia a companhia do filho, Iranilton, hipnotizado pela novidade.

“Lembro que passavam mais filmes de faroeste, com sessões mais disputadas nas tardes de domingo. Meu pai passava o dia lá, e na hora do almoço eu e minha mãe levávamos a quentinha pra ele almoçar”. Iranilton lembra ainda da travessura de criança, quando o pai se descuidou e ele pôs o dedo na frente do projetor. “Apareceu aquela sombra na tela. Foi uma gritaria lá embaixo, o povo assustado. Meu pai perguntou o que tinha sido e eu disse que não sabia de nada”, recorda.

A cena lembra a figura do garoto Toto (Salvatore Cascio), do clássico cinematográfico Cinema Paradiso. Toto trava amizade com Alfredo (Philippe Noiret), o projecionista. Todos estes acontecimentos chegam em forma de lembrança, quando Toto (Jacques Perrin) cresce e se torna cineasta de sucesso. Iranilton, mais tarde, se tornaria editor de política do jornal que ocupara o espaço do velho Cine Poti.

Fim do rádio e começo dos novos tempos
Em fins dos anos 50, o prestígio da rádio começava a declinar frente à chegada da televisão e a evolução do cinema. A Rádio Poti – primeira rádio do Nordeste associada ao grupo de Assis Chateubriand – perdia espaço gradativo. O auditório, o palco de tantas histórias, daria lugar ao maquinário do jornal Diário de Natal – o primeiro veículo a ser impresso em Off-set, a ter páginas coloridas e a se informatizar, que se transferia da antiga sede na Ribeira para o novo prédio.

A Rádio Poti se limitava aos estúdios, como as outras grandes rádios da época mais tarde se adequariam. O prédio ganhou nova fisionomia. E desde então sofreu reformas para se adequar aos novos tempos e às novas tecnologias. Em fevereiro, o Diário de Natal escreveu uma nova página de sua história, sem apagar da memória o livro de fatos e acontecências de sua evolução nos últimos 70 anos, sempre amparada na filosofia da vanguarda e sob a luz dos novos tempos.

Memória
O jornal O Diário, fundado em setembro de 1939 para publicar as notícias da 2ª Grande Guerra, não tinha instalação própria, gráfica própria e nem mesmo uma redação - sobrevivia no prédio e com a redação de A República. Resistiu até abril de 1942, quando diante das dificuldades venderam O Diario para o empresário Rui Moreira Paiva que, naquela época, era o representante, em Natal, da Companhia de Navegação Costeira e estava igualmente interessado em combater o nazi-fascismo.

Em suas mãos, O Diário estruturou-se melhor, tendo adquirido duas Linotipos (sistema de matrizes que, após agrupadas, servem para fundir uma linha de chumbo, contendo os caracteres digitados no teclado). Além disso, o jornal ganhou espaço próprio, instalando-se num prédio da Avenida Tavares de Lira. Depois, transferiu-se para outro na Rua Frei Miguelinho, também no bairro da Ribeira, até a mudança para o prédio da Avenida Deodoro da Fonseca, em Petrópolis.

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