E lá vai um matuto provinciano ao xequin do Aeroporto. É a terceira vez que faz isso. A primeira, aos 10 anos: sequer se lembra. Lembrou-se da outra quando pegou pela segunda vez uma fila desnecessária, para compra ou verificação da passagem. Relutou em entregar a mala que só veria em Fortaleza. É tanto roubo. Pareceu uma despedida.
Menos de uma hora separam Natal de Fortaleza. É só o tempo da dor no ouvido. Aliás, são engraçadas as fisionomias dos tripulantes na decolagem e pouso da aeronave. Cada qual quer trasmitir naturalidade na expressão enquanto o ouvido parece guardar um saco de areia prestes a explodir. Saiu do avião batendo no ouvido como que para desentupir.
No hotel, o gerente afirma que o cartão magnético da abertura da porta também vale para ativar o sistema elétrico do quarto. “O senhor já conhece?”. “Claro”, responde o matuto orgulhoso. “Conheço porra nenhuma. Coisa de maluco do carái: um cartão que abre porta e liga a energia. Só sendo. Se a televisão num ligar eu reclamo e pronto”.
Os controles da TV e do ar condicionado pareciam brinquedo de criança. “Nada funciona aqui no quarto, qual o problema?”. “O senhor colocou o cartão no sistema?”. “Esqueci”. E o matuto foi aprender. Procurou na grossa maçaneta da porta uma abertura semelhante à entrada do cartão no caixa eletrônico do Banco. Era ao lado. E a luz chegou como árvore de natal. Satisfeito, brincou de tira e bota: um matuto da província.
Hora do almoço; do feijão preto. Era “selfe sérvice”: cada um bota o seu. Mas, o matuto teve dúvida. “Aquilo era feijão verde, sopa de ervilha ou legumes afogados em caldo sujo?”. Preferiu arriscar no arroz, branco como de costume e no bife engraçado, enrolado numa salsicha. “Por certo pro executivo isso é chique”, pensou.
Já à noite, antes da carona para a Bienal, passeou no calçadão da Beira Mar. “Cabelo ao vento, gente jovem reunida”, diria o cearense Belchior. Um retrato semi-igual das nossas praias urbanas, com mais estrutura e segurança. Já no Centro de Convenções, show do Teatro Mágico e a interminável gritaria das fãs, a mesma de Natal. Sentiu-se mais velho, impaciente. Seria a “madureza”, como citou Drummond?
Assistiu o show do palco. Caras e bocas fanáticas. Dizem que a histeria é doença feminina. Discordou ao ouvir do palco a voz de um “macho”: “Anitelliiiii, liindoooo”. Preferiu sentar no sofá próximo ao camarim. A espera demasiada rendeu a perda da carona de volta ao hotel e um lanche com a trupe. Prometeu ao Anitelli que não revelaria seu lanche: um sanduíche, metade de outro e três milk shakes. “É coisa de colunista social”, argumentou.
A entrevista com Vitor Ramil no dia seguinte foi mais tranqüila. Esperou a passagem de som para conversar com o criador da “estética do frio”. Pensou que o compositor viesse agasalhado com casaco de lã e gorro. A conversa rolou até ele descobrir que o repórter chato atrasou seu show em quase meia hora. Melhor com Chico Anysio, que elogiou a “maravilha” de província do matuto. Ou o cordelista João Firmino. Na sua simplicidade, parou a palestra para não atrapalhar a conversa ao celular de um na platéia.
Foram três dias em Fortaleza. Não “avistei” Fagner. Pudera: o itinerário Hotel-Centro de Convenções-Hotel dificultava qualquer familiaridade com a “terra da luz”. Decorei alguns nomes de rua e o rosto de um travesti gritando: “Chegue meu soldado!”. O matuto – matuto mesmo – vestia uma calça com estampa do exército na praia.
O matuto adorou a Bienal. Sentiu falta de um estande de sebos. Mas assistiu uma diversidade de autores, temáticas e discussões. Se não conseguiu dizer “the books is on the table”, disse pra uns três: “Jo no ablas espanhol mui bien”. A linguagem do liseu ele já conhecia bem. Ainda assim comprou um livro por R$ 89 mangos cearenses pra ler a hitória de uma baleia.
Chegada a hora, o matuto se apresenta na recepção do hotel. Explicaram-lhe que tudo estava incluído, inclusive a água. Mas não a água do frigobar, do qual bebeu cinco. Pagou apenas a fortuna das águas antes de entrar na van rumo ao aeroporto. O motorista, conversador, de início, disse que “comeu” quatro mulheres no dia anterior. Contou os minutos pra chegar ao destino. Depois que disse que a água de Natal era a mais pura, que Fortaleza importava água mineral de Natal, mas que deu a “reviravolta” e hoje tem mais de 52 empresas de água mineral na cidade, calou-se. “Quem dá corda é cacimbão”.
No aeroporto, ainda tonto com tanta mentira no ouvido, esqueceu e lá estava eu na fila do xequin novamente, sem necessidade. Pulemos a passagem de um casal homo (ou emo?) a perguntar ao matuto se também iria a São Paulo. Já no avião, a voz padrão do comandante anunciava vôo para São Paulo, com parada em Natal. Olhei assustado para a fila de passageiros que adentrava e vi o casal emo-homo. Gelou. Parecia o surfista prateado. Havia mais dois assentos ao seu lado.
Colocou o livro na cara e fingiu concentração. Os olhares de soslaio detectaram apenas uma senhora ao seu lado. Ela jogou sua mala no assento do meio e perguntou como desligava seu celular. Pensou: “mais uma matuta pronvinciana”. E essa era mesmo. Na decolagem, pressionou as duas mãos na orelha como quem desejasse nunca mais ouvir as baboseiras de Bush. Em seguida, olhou para o matuto: este com a expressão natural de um lord a ler Nietzsche, mesmo com ouvidos destruídos em contagem regressiva para explodir.
Já na província contornou de longe a área do xequin. Não ouvia nada. A barata dentro do ouvido ainda obstruía tudo. A matuta que viajou ao lado andava batendo na orelha. Parecia com raiva. Vai ver é coisa de potiguar-matuto. Só pode. Cariri da gema agüenta batida de sol e falta dágua. Natalense tem de ficar é a espera dos monomotor americano, lá perto da Redinha. Se aventurar em país cearense é coisa pra doido.
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Ótimo texto, desses que deixa a gente com vontade de saber o resto das histórias.
ResponderExcluirQuando é que a gente toma um pra botar o papo em dia?
Bjin
o ponto de vista de outro sobre essa cidade que é nossa é, no mínimo, interessantíssimo. adorei. (e uma pena que tu não tenha visto sebos aqui na bienal. temos dois). bons dias!
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