Setas para o céu
Artista plástico, Marcelo Fernandes desenvolveu uma técnica original com o uso de giz de cera multicolorido
O irreconhecível ainda causa medo. As formas tradicionais são sempre mais confortáveis. Quebrar o paradigma e investir no imponderável parece arriscado. E o risco é para poucos aventureiros. Um deles permanece mergulhado no abstracionismo há mais de três décadas. Pinta o mundo dos seus sentimentos e intuições sem olhar para o realismo da superfície. Marcelo Fernandes é hoje dos mais conceituados artistas plásticos da cidade. E no pequeno-infinito espaço de seu atelier, colore a alma e as telas acumuladas sem compradores sem medo, disponíveis a enfrentarem a arte abstrata.
Marcelo Fernandes é dos poucos artistas detentores de uma técnica original de pintura. No Rio Grande do Norte merecem lembrança a arte cinética de Abraham Palatnik e o transfigurativismo de Zaíra Caldas. O estilo de Marcelo, nem ele mesmo denomina. Prefere a liberdade da arte abstrata aos limites delimitadores das conceituações. "Minha arte é livre, cara". Além dos gizes multicoloridos já patenteadoscomo criação própria e disseminados pela Europa, os bastões pintados em tela, como se fosse um jardim lúdico surreal, torna inconfundível a obra de Marcelo.
A técnica surgiu por acaso, quase numa brincadeira. Precisou de práticas até o domínio de forças, combinações e estilo. Marcelo explica o processo sem medo da cópia. A intenção é disseminar o conhecimento, a arte. té pede ao repórter uma busca na internet. Para quem também transforma objetos inanimados e lixos em arte, as telas dos computadores cada vez mais vivas assustam. "Não sei mexer. Gostaria de saber se há mais alguém pintando com a mesma técnica. Há alguns anos ensinei para uma turma pequena de alunos na Europa. É possível alguém ter dado continuidade".
De forma básica, a técnica se utiliza de uma superfície de papel, cartaz velho ou outro material branco. Nele, Marcelo preenche de giz. Três ou quatro cores diferentes divididas em espaços próprios. Às vezes, mais de um cartaz, para abrigar mais cores. Depois, o cartaz é posto renteà tela ainda branca. Marcelo, então, fricciona uma borracha na cera concentrada no cartaz e deixa vazar na tela, como um risco. E dessa maneira, o artista preenche de cores a base do quadro e os detalhes, os quais o decano das nossas artes plásticas Dorian Gray Caldas chamou de bastões ou "setas para o céu".
"O abstracionismo não enche barriga"
Alma irrequieta, cheio de tormentas e descontroles emocionais. Assim foi Marcelo Fernandes na juventude. Assim foram os grandes artistas plásticos do mundo. "Num movimento feito no ginásio do CIC, eu pintando lá meu quadro no chão, toda hora pisavam em cima. Fiquei indignado. Chamei os cinegrafistas das TVs que estavam lá e disse que faria uma performance. Peguei a lata de tinta e joguei em cima de mim". As peripécias dele e do colega Assis Marinho em Brasília, quando convidados pelo então diretor do Senado, Agaciel Maia, são próximas das farras regadas a mulheres, drogas e bebidas noticiadas pela imprensa nacional ao que chamaram de "tardes molhadas de Agaciel". E aos 53 anos, confessa: "Hoje tenho outra mente. Não tenho mais idade pra isso".
Marcelo nasceu no segundo dia de carnaval. "Nasci para transmitir alegria, pra somar, ser alguma coisa". Uma adolescência e primeira fase adulta nos campos de areia na Praia dos Artistas e até contrato para jogar em time de futebol. "Mas era preciso disciplina de desportista. Exército não é comigo. Eu tinha de ser artista, autônomo". Marcelo iniciou nas artes com montagem de cenografias, influenciado pelos amigos. "Jaime Lúcio fundou o grupo de teatro Nuvem Verde, o primeiro a encenar Brecht no Rio Grande do Norte. Viajamos pelo Estado, ganhamos prêmios. E comecei a estudar artes plásticas. A convivência em grupo é complicada. Eu queria desenvolver meu protesto sozinho".
Foi o próprio Jaime Lúcio quem convidou Marcelo à TV Univeristária, à época a única do Estado. "Fazia a cenografia dos programas. Fiquei lá 5 anos. Saí por causa de loucura. Fui expulso da TvU". Nesse período na TV, Marcelo conheceu Assis Marinho. Dividiram atelier por uns três anos. "Ele insistiu para que eu continuasse no figuratismo, no realismo. Mas meu negócio sempre foi o abstrato".
Desprestígio
Desempregado, Marcelo juntava o resto dos gizes de Assis no chão. E também por acaso, descobriu outra ferramente artística original e patenteada. "Deixei a cera ao sol e ela derreteu, formou uma massa pastosa. Juntei outras cores e comecei a elaborar o giz multicor. Com giz eu faço um arco-íris com apenas um movimento". A ideia foi patenteada por Marcelo em 1986. "O giz me deu segurança como artista plástico. Me fez ter a certeza que eu queria o abstrato. E já no ano seguinte venci o 1º Salão de Artes Visuais de Natal, a capa da Listel, e tive a opção de viajar a seis países da Europa no centro das artes. Não havia nada parecido".
Marcelo lamenta o pouco interesse pela arte abstrata. "Ninguém encomenda uma tela abstrata". E lamenta: "O abstracionismo não enche barriga, mas preenche minha alma. Mas nesses dias só alma vai caminhar, porque a carne está secando". O valor da arte dele vai além do preços de suas telas acumuladas no atelier localizado na rua Cussy de Almeida, Cidade Alta (327). "É dos nossos bons artistas", carimba Dorian Gray. E completa: "A arte de Marcelo Fernandes ainda será objeto de estudo comparativo e louvores".
Marcelo Fernandes
9942-1348
3222-7727
* Matéria publicada neste domingo no Diário de Natal
[image: Quando usamos a palavra em cima?]
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