Por Alcides Vilar de Queirozescritor, pesquisador e tio-avô deste blogueiro
- Para Franklin JorgeUma cidade faz cem anos e eu a sinto desabrochante, menina-moça a me despertar enlevo, a reascender encantos e, na distância, a fazer renascerem mais fortes as imagens que na melancolia do exílio cultivei sempre como chama votiva a iluminar caminhos incansavelmente trilhados na infância, e rostos já emoldurados no tempo. E esse lume brilha hoje intensamente, ao lado das cem velas que o Ceará-Mirim está acendendo para comemorar a Lei nº 387, de 9/6/1882, que a transformou de “Briosa Villa” em cidade.
A vila nascida briosa pela memória dos gloriosos feitos do seu filho maior – Dom Felipe Camarão – e moldada foi pelo trabalhado incansável de homens valorosos, de autênticos semeadores de progresso, ditosa se tornaria ao longo dos tempos, como agora se vê, neste centenário, ao perceber que as gerações primeiras não contiveram apenas em si o dom maior do valor e do saber, mas os germinaram pelas sucessivas descendências. Assim, as sementes de riqueza, de fé incomensurável no futuro do chão amado, lançadas por pioneiros como um Dr. Victor de Castro Barroca (seu primeiro Juiz Municipal, senhor de engenho fidalgo e grande incentivador da instalação ali, na sua Boca da Mata, da sede do Município), de um Manoel Varella do Nascimento (Barão de Ceará-Mirim, benfeitor maior dos patrimônios da Matriz e do Município) e toda uma plêiade de homens ilustres que não seriam possível aqui citar, mas cujos sobrenomes ainda hoje são respeitosamente repetidos, por si e por seus descendentes, como os Raposo da Câmara, Pereira Sobral, Ribeiro Dantas, Meira, Pacheco, Antunes, Carrilho, Pereira e tantos outros de beneméritos aristocratas cearamirinenses, se multiplicaram em benefício próprio e se irradiaram por distantes paragens. Tanto na vida pública como nos meios intelectuais, Ceará-Mirim sempre viu filhos seus nas primeiraslinhas, como Augusto Soares Raposo de Câmara, vice-governador do Estado, alçando-se em várias ocasiões ao primeiro posto os desembargadores Elviro Carrilho da Fonseca e Silva, Virgílio Octávio Pacheco Dantas e Fábio Máximo Pacheco Dantas na alta magistratura do antigo Distrito Federal e do Estado; João da Fonseca Varella tornando-se General Honorário por sua atuação na Guerra do Paraguai; o advogado, mestre e Senador José Augusto Meira Dantas feito parlamentar pelo Estado do Pará; Luiz Lopes Varela, o fidalgo continuador das tradições de nobreza da Usina São Francisco, assumindo um mandado no Senado da República; o historiador Rodolfo Garcia na Academia Brasileira de Letras, assim como Edgar Barbosa foi e Nilo Pereira e Sanderson Negreiros são membros ilustres da Academia Norte-Riograndense de Letras. Nomes sem conta de poetas, advogados, jornalistas, médicos, administradores e empresários encheriam as páginas da história de Ceará-Mirim de brilhantismo.
Não cabe a mim, filho humilde e distanciado no tempo e no espaço, levantar a voz para enaltecer as velhas figuras e as doces imagens deste Ceará-Mirim centenário. Incontida, porém, como as cheias do rio a inundar o vale primoroso, a emoção deste filho saudoso transborda e se espraia em lembranças já confusas, mas de um amor desmedido. E as recordações desfocadas pela distância se tornam ainda mais belas, e a minha cidade emerge como um sonho, um bonito sonho, nos recônditos de uma alma apaixonada, tal como se o Ceará-Mirim tivesse sido para mim o amor perdido e jamais desaquecido. Vejo, sobretudo a também centenária Igreja de Nossa Senhora da Conceição, majestosa como todo o Vale, construída grandiosa talvez para o alto da colina poder dominá-lo, para bem vigiar,para manter sob seus olhares de bênção, usinas e engenhos, casas-grandes e palhoças, todos quantos no verdejante canavial construíam suas riquezas, sua sobrevivência. Revejo o velho Cemitério onde tantos mortos queridos, tantos conhecidos de outras épocas, repousam finalmente, embalados pelo silêncio, pelos leves gemidos dos ciprestes ao vento e, sobretudo, pela minha prece e pelo recordar contínuo. O Colégio Santa Águeda, belo na sua arquitetura e na sua missão (fecho os olhos e ouço o rumor de hábitos passando, das Gabriela, Natália – a quem tanto devo – Ângela, Do Carmo, Cristina: todas Maria, todas santas). Olho a chaminé pioneira do Carnaubal, ainda testemunhando, como tantas outras, o passado mais esplendoroso. As ladeiras, as ruas povoadas de humildes caminheiros como Amaro do Pote, Sabina, Chica Beiju-Quente; relembro a fiel presença de Abel Correia na Casa Paroquial; peço a bênção à velha catequista Dª Senhorinha e ainda pareço ouvir as serenatas dos boêmios José Lemos, Gabriel e José Wilson, enchendo de acordes as noites do vale. Recordo a imponência do Coronel Felismino Dantas, diariamente passando na sua carruagem em direção ao engenho, elegante como se indo estivesse a uma reunião da câmara dos Lordes; a pomposidade das missas cantadas que o Monsenhor Celso Cicco oficiava com o esplendor de um pontifical romano; as multidões piedosas das Missões de Frei Damião e o sino povoando de sons a cidade na despedida de tantos.
E nesse saudoso rememorar, imagino o Ceará-Mirim querido e distante, esta cidade museu de emoções, engalanado e festivo, altivo em suas torres e chaminés, o canavial acenando ao vento mais efusivo na saudação à grandeza, mantendo vivo na memória das gentes um acervo grandioso de fatos e de nomes que é preciso preservar para a posteridade. Não pode ser esquecido, por exemplo, um Frei Serafim de Catânia lançando em 21/2/1858 a pedra fundamental da Imponente Matriz (completada em 1900); o vasto rol de filhos da terra bacharéis de Olinda, encimado por José Carrilho do Revoredo Barros, da turma de 1874,ao lado de uma vasta galeria de médicos formados na Escola da Bahia; a ação marcante de Manuel de Gouveia Varella,instalando luz elétrica na cidade durante a sua gestão como prefeito; o Coronel Onofre José Soares e erigindo o Mercado Municipal, fator de tão amplo desenvolvimento para o comércio local, e a sua ativa vida literária, iniciada com o jornal “A Escola”, dos pioneiros Meira e Sá, Ronaldo Brandão, Olinto Meira e Vicente Inácio Pereira, em 1837.
Há fatos e nomes em profusão a serem recordados. Toda uma história bonita está para ser escrita e que somente enche de orgulho a quantos nasceram na centenária Ceará-Mirim ou a elegeram como sua pátria. O filho ausente nada mais pode fazer além de amá-la e senti-la cada vez com maior intensidade, mesmo sabendo-se incapaz de atingir a dimensão de afeto que como cronista-amante Nilo Pereira dedica à terra querida, em que encontra “vestígios do paraíso perdido”. À distância, recordo com saudade imensa a minha Cidade do Ceará-Mirim, essa exuberante menina-moça de cem anos.
* O texto Uma Cidade Menina foi publicado em 20 de junho de 1982. Infelizmente não tem qual o nome da mídia. A informação foi enviada pela poeta Lúcia Pereira, também cearamirinense.- A foto é do centenário de Ceará-Mirim - 30 de julho de 1958.
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