sábado, 19 de junho de 2010
O silêncio da romanceira
A romanceira Militana Salustino do Nascimento - considerada a maior romanceira do Brasil - morreu hoje à tarde em sua residência, em São Gonçalo do Amarante. O velório de Dona Militana será hoje à noite no teatro Poti Cavalcanti, em São Gonçalo. Amanhã, às 14h, haverá missa também no Teatro, seguida da cerimônia de seputamento.
matéria publicada em 10 de junho no Diário de Natal
Dona Militana Salustino sai do hospital com dores aos 85 anos e ainda inspira cuidados médicos
O romance de Dona Militana com a vida se tornou menos musical nos últimos dias. Desde domingo, a maior romanceira do Brasil está praticamente muda e sonolenta. As cantorias que um dia lhe renderam comenda nacional entregue pelas mãos do presidente Lula, em Brasília, estão cada vez mais restritas aos CDs já gravados com 33 raridades poéticas musicadas da Idade Média - época das Cruzadas. A guardiã deste tesouro medieval repassado pelo pai Atanásio Salustino durante a colheita na roça, escapou mais uma vez do hospital aos 85 anos, mas inspira cuidados.
Dona Militana chegou ao hospital da Hapvida após dormir o domingo inteiro e emendar com a segunda-feira, sem comer nada. Segundo a filha Benedita, exames de rotina constataram “pequena” infecção urinária. Os médicos rejeitaram motivos para internação e apenas passaram medicamentos para a dor. A romanceira voltou ontem à sua casa humilde, situada na comunidade Santa Terezinha, em São Gonçalo do Amarante, ainda com dores na perna, na cabeça e debilitada. “Ela saiu do hospital, mas não está muito bem. Os médicos disseram que está tudo normal”, disse a neta Lídia do Nascimento.
Segundo Lídia, as dores de cabeça são rotineiras desde quando Militana passou por uma angioplastia para desentupir artérias (90% estavam comprometidas) no dia em que completou 84 anos, em 19 de março. Outro motivo aparente são as conseqüências do fumo, que acompanhou a romanceira por décadas de vida e foi abolido quando da cirurgia. Desde então, Dona Militana sofre com faltas de oxigênio. “As dores na perna eu acredito que sejam pela falta de exercício. Ela gostava de caminhar pelo quintal. Mas há alguns dias só quer ficar deitada. Não agüenta nem ficar muito tempo sentada”, lamenta a neta.
Nem mesmo a mangueira onde Militana gostava de passar praticamente o dia, ao redor de patos, coqueiros e a visão do Oiteiro onde morou mais de 80 anos e insiste em querer voltar, ela sente vontade. Em abril de 2009, o Diário de Natal promoveu o encontro da romanceira com o folclorista Deífilo Gurgel, seu “descobridor”. Por trás das palavras rudes e das valentias relatadas quando a peixeira acompanhava a romanceira nas idas e vindas à roça ou à cidade para fazer feira, Militana guardava doçura. Ria envergonhada com a mão na boca, como quando Deífilo contou da viagem feita a Sergipe para um seminário sobre o romanceiro.
“Eu pedia para ela deixar de fumar o cachimbo no carro, mas não tinha jeito. Ela é geniosa”. Sentada na cadeira, Dona Militana cantava para ninguém ou para recordar. O olhar era atento a qualquer movimento nas redondezas do cercado. Nos olhos cismados, o retrato de quem viveu jornadas reais, sem as aventuras romanceadas que a tornaram famosas no Brasil. Naquela oportunidade, Deífilo Gurgel, acreditava na remota possibilidade do conhecimento de outros romances por Militana, hoje emudecido pela idade e pela saúde debilitada.
Arquivo vivo
O arquivo vivo do romanceiro ibérico guardado por Militana mereceu admissão na Ordem do Mérito Cultural na classe Cavaleiro das mãos do presidente Lula, em 3 de novembro de 2005. A comenda foi concedida a nomes como Oscar Niemeyer pela contribuição à cultura brasileira. Para dimensionar o porquê do merecimento há que mencionar a origem dos romances, datados dos primeiros séculos do milênio passado. Foram transmitidos oralmente e perpetuados pela memória popular. Na Espanha e Portugal ganharam maior projeção, chamado romanceiro ibérico.
Segundo Deífilo, ao Brasil foram trazidos cerca de 100 romances, alguns longos, com centenas de estrofes, os quais aproximadamente 50 foram descobertos e catalogados pelo folclorista. Destes, 33 pertencem ao conhecimento ruralista-medieval de Dona Militana. Alguns romances impressionam pela raridade. Caso do intitulado O Milagre do Trigo, cantado por Maria José (como é conhecida a romanceira no sítio Oiteiro, onde nasceu e morou até o ano passado).
Deífilo conversou com estudiosos do romanceiro do Brasil e exterior. Ninguém reconheceu o romance. Bráulio Nascimento, o papa do romanceiro no Brasil, conhecia em forma de conto popular, mas não versificado e cantado como foi gravado. O português J.J Dias Marques afirmou que na biblioteca da Universidade de Portugal há várias cópias, mas tudo em espanhol. Nada em português. “E Dona Militana sabia em versão muito bem conservada. Por aí vemos a grandeza dessa figura”, destacou Deífilo.
Durante a visita da reportagem naquela manhã, Dona Militana cantou versos inéditos. Segundo Deífilo, as palavras podem ser improvisação ou o início de algum romance desconhecido. Dizia a letra: “Irmão só sou assim por tua ingratidão. Dois palitos de angicos tiraram tua visão; tiraram sem dó tua visão”. A surpresa maior pelo ineditismo do verso deixou Deífilo anestesiado a princípio. E causou estranhamento também pela quebra de silêncio repentino. Militana estava para poucas conversas naquele dia. Contou feitos de valentia de sua infância pobre, longe dos atos heróicos da nobreza, das cavalarias, príncipes e jornadas dos romances que canta. E não quis cantar por motivo especial: “Quem canta de graça é galo para alegrar terreiro”, sapecou a romanceira contra a insistência de todos.
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