Sinto até calafrios quando ouço alguém se auto-afirmar um cidadão do mundo. Eu, apenas um passarinho de gaiola, acostumado às cenas e costumes da esquina. Deitado em rede, numa varanda minha, até imagino-me nas gôndolas de Veneza, tomando um café no Champs-Élyseés ou a passear nos becos milenares do Cairo. É que os desaventurados têm esse costume dos sonhos impossíveis, de mastigar a essência daquilo que poderia ter sido e não foi.
Digo isto, amigo leitor, porque li entrevista com a jornalista Glória Maria. Ela, que passou dez anos à frente do Fantástico e largou o programa para novas aventuras, foi indagada se sente falta da emissora. Dessas mulheres de essência cosmopolita, afirmou: “Saudade é palavra que só existe na língua portuguesa. Sou uma cidadã do mundo”.
E eu, aquele cara do outro quarteirão; aquele que apenas assiste o rapaz distraído derrubar os livros da moça para ali iniciarem romance de novela, me arrepio com a frase da jornalista. Sou um provinciano, preso mesmo aos quarteirões da vida que construí. Ora, querer mais que a infinitude do mar, os mundos dos livros ou a eternidade das amizades é mostrar-se ingrato com a vida. Uma vida, registre-se, longe daquela “vida besta” assistida dos sobrados das casas do interior, descrita por Drummond.
Se coleciono auroras em vez de postais é porque suspeito que a verdadeira vida reside mesmo na imaginação. E por ela viajo, sonho e me transformo naquele herói das multidões, tão cheio de carisma e beleza. Como já afirmei, a vida é uma grande ilusão. Não se engane. E melhor é, ao acordar do sonho, assistir o cotidiano já conhecido, de esquinas do passado e do presente. A vida é mais fácil assim. Da ilusão brota poesia. E como disse Ferreira Gullar, a poesia existe porque a vida não basta.
O amigo leitor pode me chamar de fraco, medroso ou outra classificação que o valha. Confesso outros defeitos muitos, não esses. Sou apenas um provinciano, e incurável, como Cascudo. Se me esforço a permanecer em minha redoma é por preferir a distância de um mundo dito mais fascinante e perfumado pelo cheiro do capital. E como Schopenhauer, também opto pela esquiva aos bípedes como melhor forma de expulsar minhas vontades e desejos – frutos de todos os pecados.
E assim, por estes quarteirões de uma Natal de morros, dunas, mar e rio, coloco os tijolos do muro de minha vida, com o cimento do meu silêncio e gratidão: alicerces das minhas fantasiadas paixões.
* Foto: Fernando Chiriboga
Beleza de texto!
ResponderExcluirUm abração!
Caro Sérgio,
ResponderExcluirTomei a liberdade de transpor o belo texto para o meu blog:
www.oteoremadafeira.blogspot.com
Espero que goste.
Abração.
Lívio
Belíssimo texto. Parabéns. mas peço permissão pra mudar de assunto e comentar sobre a matéria do Diário em que você trata do abandono em que vive Teatrinho do Alecrim. Se ele continuar abandonado, o Ministério Público nem tomará conhecimento. Pode cair que os promotores do patrimônio continuarão em silêncio. Silêncio cúmplice do descaso. Mas se alguém tomar a iniciativa de salvar o Teatro e houver holofotes nessa iniciativa, aí os senhores promotores correrão para buscar um jeitinho de processar alguém e assegurar um lugarzinho à luz. abraço de François.
ResponderExcluirRapaz, Cidadã do Mundo de Cu é Rola! Tá faltando é "peia" nessa Glória Maria.
ResponderExcluirIrretocável o teu texto, Sérgio.
ResponderExcluirNão é por acaso que estou te lendo
todos dias.