Dramaturgia inspirada em conto de Monteiro Lobato explora preconceitos e sensações de uma “negrinha”Uma menina negra que viveu num engenho de açúcar no fim da escravidão. Uma vela, uma boneca, grãos de café. Um fantasma que ainda atormenta a Casa-Grande, a “casa de açúcar” como ela gosta de chamar. A peça Negrinha teve como inspiração o conto homônimo de Monteiro Lobato – uma menina que mistura as memórias de sua vida com fantasias e revela, pela perspectiva de uma criança negra, as contradições de uma casa, de um tempo e uma história.
As dependências do Campus Avançado da Cidade Alta do IFRN incorporarão hoje a aura dos casarões do fim do século 19. Uma viagem ao tempo por 50 minutos para recriar um pedaço da história do Brasil: o fim da escravidão. Um momento não relatado nos livros e contado sob a ótica de uma criança sem nome e sem futuro, aprisionada como um fantasma na casa grande e chamada simplesmente de Negrinha. A peça começa às 20h, com temporada até sábado. A entrada é franca.
O monólogo polemiza também ao colocar uma atriz branca vivendo uma personagem negra. A atriz paulista Sara Antunes conta que a mensagem transmitida pela peça varia conforme a cidade. Os cenários, os tipos e o roteiro são adaptados aos costumes da região. No todo, o monólogo desperta reações contrastantes: risadas, comoções, medos, brincadeiras... A interação com o público é ativa e, assim como o diálogo do personagem, procura mostrar a beleza das cores longe do preconceito.
“Negrinha mostra que as cores poderiam ser mais bonitas. Ela, acostumada desde pequena ser chamada de negrinha, cria afeição pela cor das pessoas. E provoco o público a também chamar outros da plateia por cores que sejam semelhantes à sua tonalidade de pele. Isso provoca risadas, mas também reflexões”, diz a atriz. O imaginário das cores na criança demonstra a sutileza e ingenuidade infantil e também o quão cruel rótulos racistas podem se tornar.
A montagem se apresenta fora dos palcos convencionais para provocar uma experiência sensível no espectador. Uma imersão ao universo de Negrinha, através da arquitetura, sons e cheiros. O público encontrará a Casa Grande, com cadeiras e poltronas de época, e a Senzala, com esteiras e tocos de madeira. A iluminação é feita por velas, onde sombras e luzes atuam ao lado da atriz. Um trabalho artesanal voltado ao preciosismo das palavras, objetos e figurinos.
Sara Antunes diz que a peça procura objetos de época relacionados à história de cada região para compor o cenário. “Em Recife conseguimos oratórios e relíquias da época para montar a peça em um casarão com mais de 300 anos. Em João Pessoa encenamos em uma Casa Grande verdadeira. Em Salvador, como há um movimento negro atuante, os diálogos foram mais agressivos. E dessa maneira tentamos moldar o espetáculo à realidade local. Por isso, a montagem é feita por uma equipe da cidade”.
O casarão montado é repleto de detalhes espalhados em cada canto: grãos, uma boneca, fitas de amarrar o cabelo e muitos espelhos e reflexos. As luzes minúsculas de velas cansadas e manipuladas pelas mãos de Negrinha revelam cores amargas e produzem imagens confusas, assemelhadas a sombras e assombrações, de realidades históricas já apagadas da memória. É nesse ambiente um pouco fantasmagórico, enorme e abandonado onde vive Negrinha, as suas fantasias e as contradições de uma época.
“Câmara Cascudo diz que o nome inicia a existência religiosa e civil da criatura. Sem nome não há identidade social e individual. Assim, o que identifica Negrinha, sua cor, é negado por nós ao apresentarmos uma Negrinha “cor-de-leite”. Nesses estranhamentos, ora nas cadeiras de Senhores ora nas esteiras de escravos, que nos posicionamos no curso da criação”, conta o diretor Luiz Fernando Marques. E conclui: “Brincamos com fogo, com gente e com a memória de histórias que não deveríamos perdoar”.
ProgramaçãoO Campus Avançado da Cidade Alta do IFRN realiza ainda outros espetáculos de hoje a sábado, dentro do programa A Cor do Olhar. São ações destinadas a discutir e pensar as questões éticas da atualidade. O evento é uma realização dos alunos do 2º período do Curso de Tecnologia em Produção Cultural do IFRN, coordenado pelos professores do curso. Haverá exposição fotográfica, workshop, oficina, debate e apresentação de espetáculos teatrais, todos gratuitos. Confira detalhes de cada ação:
Exposição fotográfica “A multiculturalidade através das cores”, com Carlos Cartaxo/PBA exposição, composta por 30 imagens, possibilita uma análise comparativa do Nordeste com um país africano através de uma ótica multicultural, geográfica e histórica.
Aberta a visitação de hoje a sábado, das 8h às 21h.
“Negrinha”, com a atriz Sara Antunes/SPInspirado no conto homônimo de Monteiro Lobato, o espetáculo Negrinha foi concebido pelo Grupo XIX de Teatro. A montagem conta a história de uma menina negra que não tem nome e é chamada pelo apelido que identifica sua etnia. A criança refere-se a todos ao seu redor pelas tonalidades que os enxerga, o que ressalta a crítica presente no texto: o preconceito da cor.
De hoje a sábado, às 20h. Retirada de ingressos no local, até 1h antes da peça.
Debate sobre questões étnicasApós o espetáculo “Negrinha”, acontecerá uma conversa entre os presentes sobre as questões étnicas abordadas no monólogo. Contará com participação de professores, alunos do IFRN e integrantes de associações quilombolas do Estado.
Hoje, às 21h, após o espetáculo “Negrinha”.
Workshop "Ator, um autor de seu tempo" (com Sara Antunes, SP)O workshop tematiza dinâmicas de improvisação, com o objetivo de criar uma vivência de criação do ator-autor, utilizando a música, a relação espacial e a memória afetiva de cada participante.
Amanhã, das 9h às 13h. Inscrições limitadas pelo e-mail centroculturalifrn@gmail.com
Oficina de Teatro do OprimidoAs oficinas de Teatro do Oprimido são espaços de sensibilização, vivência, conhecimento e difusão da metodologia do Teatro do Oprimido, preconizada pelo teatrólogo Augusto Boal.
Amanhã, das 13h às 17h. Inscrições limitadas pelo e-mail centroculturalifrn@gmail.com
Teatro Fórum com grupo “Filhos da Terra”/RNO grupo é formado por jovens, do Quilombo Acauã, em Poço Branco/RN. A peça conta a história real de jovens deste quilombo que são segregados do sistema de transporte escolar por racismo.
Amanhã, às 19h. Retirada de ingressos no local, até 1h antes da peça
A Cor do OlharQuando: de hoje a sábado
Onde: Campus Avançado da Cidade Alta do IFRN (Av. Rio Branco, 743, Centro – antigo Prédio da TVU)
Contato: (84) 4009-0950 ou pelo e-mail centroculturalifrn@gmail.com
* Matéria publicada hoje no Diário de Natal
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