domingo, 6 de abril de 2008

Vida de repórter

Mais do que uma opção profissional, ser repórter é uma opção de vida. Falta tempo para quase todo o resto: família, amigos e até leituras. Claro, não existe atividade melhor para quem é inconformado com o cotidiano dos escritórios ou com a realidade do mundo. Mas o preço para viver intensamente essa rotina sem rotina é alto e, principalmente, mal pago.

Em outra oportunidade contei da cobertura da inauguração da Ponte Newton Navarro e as dificuldades enfrentadas pelos repórteres. Conto hoje os dois dias intermináveis de cobertura dos estragos causados pela chuva, sobretudo no Vale do Assu, nos últimos dias. É um pouco o retrato da profissão.

Enquanto arriscava-me na selva da cozinha do meu apErtamento, no preparo de um macarrão mal encarado, eis que vem O Chamado: “O carro da reportagem está passando aí em 15 minutos para você ir a Assu. A barragem Armando Ribeiro sangrou”.

Aconselharam-me a encarar a coisa pelo lado bom. De certo o digníssimo chefe de reportagem quis me salvar do macarrão vingativo e de uma futura infecção intestinal. E lá estava eu na estrada. Duas horas e meia após, estava com os joelhos n’água para entrevistar os entusiasmados com a sangria da Barragem.

Um dos agricultores da região me contou que a situação de Ipanguaçu – município próximo – estava feia, decorrente do transbordo do Rio Pataxó. Sem pensar em voltar para casa no horário previsto, lá fui eu arrumar sarna para coçar-me. Mas o pior estava por vir.

Após visitar comunidades ilhadas e colher os dados para a matéria, procurei a única lan house do município para enviar os textos e fotos. De volta à redação no dia seguinte, o segundo chamado: “Amanhã, às 8h, você volta para Ipanguaçu para verificar a situação”.

Era uma quinta-feira. Quando das 11h, e após cobrir já alguns desastres fora da pauta em Lajes... “A coisa aí pelo interior do estado está muito feia e estamos estudando aqui o caso de vocês dormirem aí para visitar outros municípios”.

Olhei para minha roupa como quem olha para um companheiro de quarto. Seria ela e meu bloquinho de papel os companheiros de um verdadeiro périplo. Tive também uma lembrança saudosa da minha escova de dentes e meu desodorante. Fechei os olhos e fiquei a imaginar o filme que assistiria com minha namorada mais tarde.

Cheguei em Assu (a 220 km de Natal) umas 12 horas. A fome cavou um buraco negro no espaço sideral da minha barriga e o prefeito de Assu nem desconfiava. Levou-me a TODOS os pontos de enchente, bem distantes uns dos outros.

Quando eu já pensava em pescar algum peixe numa enxurrada qualquer, como urso atrás de salmão, o prefeito resolveu descansar. Na espera pelo almoço, senti que comeria até o braço da garçonete se demorasse mais dois minutos. Comecei a ter alucinações. Senti-me o próprio leão do filme Madagascar.

Sem possibilidades para aprofundar a situação de Assu, parti para Ipanguaçu. A coisa tava pior e apressei-me em colher todos os dados e escrever a matéria a tempo do fechamento da edição, na mesma lan house de dias atrás. Foram sete matérias escritas até procurar uma pousada na cidade e um brechó para trocar pelo menos o “fraldão”.

A pousada, na verdade, era uma casa malamanhada. Pior que bordel de beira de estrada. Muito pior, diria. O que nos envolvia não eram os braços das amistosas raparigas, mas a enchente que avançava naquela noite. Durante a madrugada, até os bombeiros enviados em caráter de emergência e também hospedados na pousada, ligaram para o prefeito pedindo ajuda.

Às 6h, senti-me um robô quando a água fria do chuveiro caiu sobre meu corpo congelado. Uma pasta emprestada e um bochecho caprichado. Metade do sabonete do banheiro foi gasto em seis sovacos sedentos: os meus e dos outros dois aventureiros da equipe de reportagem. Vestidas as mesmas roupas, partimos para o trabalho.

Fora da pousada, um cenário desolador. Bairros inteiros inundados. Após acompanhar o trabalho dos Bombeiros e a entrega das cestas básicas em um dos 30 abrigos, fui escrever, por volta das 9h. Quando estava próximo ao final, a energia na cidade caiu. Perdi tudo. Sem poder esperar, partimos para Apodi (mais uma hora de viagem). Na entrada da cidade, a surpresa: a ponte cedeu.

O cansaço já era enorme. Fechava os olhos e só via estrada e pastos enlameados. Meu cabelo, já grandinho, estava mais armado do que os membros da Farc. A textura era de um arame, e com formado de aranha em posição de ataque.

Tive a péssima idéia de ir até Umarizal (mais uma hora de viagem), município também castigado pelas chuvas. Um maracatu atômico, de certo leu as matérias do dia anterior, gritou: “É o repórter das águas”. Respondi baixinho, envergonhado após o único banho às 6h: “Só se for da falta dágua”. Eram umas 16h. Após digitar os textos e alcançar as 18h, a vez das fotos. A internet lenta demorava 10 minutos para anexar cada arquivo. Demoraríamos mais de duas horas para enviar todas.

Voltamos para Ipanguaçu e a já conhecida lan house, mais rápida, para enviar tudo. Mas, a cidade estava sem energia desde as 9h. Mais uma vez em Assu. E se fosse pouco estar dois dias com a mesma roupa, com fome, sujo e cansado e umas 2h30 distante de casa, a velocidade da internet era mais lenta que a de Umarizal. Enviamos menos fotos. A edição saiu prejudicada.

Partimos de Assu perto das 21h. No posto para abastecer, próximo ao município de Riachuelo, o frentista justificou a demora dizendo que estava lendo o DN e preocupado com os “horrores” em Ipanguaçu. Senti-me um Alfred Hitchcock do jornalismo. Depois o digníssimo, ao reconhecer o carro da reportagem, ressaltou que tinha família em Ipanguaçu. Menos mal.

Cheguei por volta das 23h30. Sem forças para o cinema ou a cerveja. E apenas com uma sensação e a lembrança do velho conselho de encarar tudo pelo lado bom: nóis sofre, mas nóis goza.

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