segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
A imortal Praieira de Eduardo Medeiros
São 100 anos de vida. E nesse novelo secular de tempo, a trilha sonora é a mesma da cidade de Natal: "Praieira dos meus amores/ Encanto do meu olhar...". E lá se vão seis estrofes poéticas e uma melodia lúgubre, síntese de uma província praiana de serenatas ao luar; de uma época romântica de modinhas e violões chorados. A Serenata do Pescador - a imortalizada Praieira - virou hino oficial da capital potiguar e lembrança primeira de dona Iracema Medeiros, nascida em 18 de janeiro de 1911, primogênita do compositor Eduardo Medeiros e resistência viva da memória musical da cidade.
Os olhos cansados escondem a memória prodigiosa. A audição já é pouca. Mas basta um mirar de olhos, uma leitura labial e Dona Iracema reserva lembranças no colchão macio do cotidiano. A maioria exalta o pai famoso à época, instrumentista e compositor de talento reconhecido naquelas décadas de Belle Époque natalense. Eduardo Medeiros musicou 365 canções. Vivia da música. cantava em bailes e serenatas. O violão e o clarinete eram inseparáveis, mesmo em casa quando se recolhia para musicar poemas e letras de poetas da cidade. "Mamãe costurava e preparava cocada, arroz doce e sequilho que uns meninos vendiam nos tabuleiros, nas ruas. Éramos pobres, mas não passávamos dificuldades".
A reputação de Eduardo Medeiros atraiu o "príncipe plebeu" e a parceria imortal. O poeta Othoniel Menezes compunha a Serenata do Pescador em 1922 durante uma confraternização com amigos, regado e bebidas, em um bar no Passo da Pátria. A intenção era homenagear pescadores natalenses regressos de um raid ao Rio de Janeiro. O texto foi concluído ali mesmo, na mesa do bar. Segundo o pesquisador Cláudio Galvão, a composição foi mostrada, dias depois, ao amigo José Bezerra Júnior, que sugeriu o nome de Eduardo Medeiros para musicar tão belo texto.
Aos 11 anos, Dona Iracema recorda o pai absorto na composição. "Ele acordou durante a noite com aquela evocação. Pegou o violão, sentou-se, pegou a letra da Praieira e colocou-a a frente.No outro dia, pela manhã, ele tocou pra mim. Aprendi rápido. Era tão bonita... Fui a primeira pessoa a ouvir e cantar a música", se orgulha a filha - uma das 18 de Eduardo Medeiros. Dona Iracema é a primogênita e único descendente vivo do primeiro casamento, com Esmeraldina da Silva Medeiros. Foram 16 filhos e a morte aos 36 anos decorrente de parto.
O casal morou na rua do Areal, nas Rocas até 1922, seguindo depois à casa número 13 da rua Pereira Simões, onde Medeiros viveu até seus últimos dias. Com a morte da mãe, Iracema ajudou o pai, por dois anos, a criar os irmãos, até novo casamento. Iracema, então com 19 anos, não aceitou bem a mudança, até que João Telles da Motta, um comerciante viúvo da vizinhança, lhe pediu a mão em casamento. Eduardo Medeiros morreria 31 anos depois, em 20 de junho de 1961, um dia antes de completar 75 anos. Em 1962, o prefeito Djalma Maranhão homenageou o músico com exposição de três objetos inseparáveis: o violão, o clarinete e seu chapéu.
Escritos e partituras perdidas
Dona Iracema lamenta a perda de escritos e partituras do pai. Quando fala no assunto até expressa sofreguidão. Também reclama os dias de chuva dominicais, quando não pode caminhar a pé os 200 metros que separam a residência onde mora, no bairro do Alecrim, da Igreja. Mesmo aos 100 anos, a filha de Eduardo Medeiros é dedicada à vida cristã. Ela, o esposo e missionários americanos fundaram a Missão Evangélica Pentecostal do Alecrim, em 1949. Desde essa data dedica boa fatia da vida à causa evangélica.
Não fugiu à tradição da família e em tempos passados "arranhava" algumas notas ao violão. Os pais, irmãos e filhos de Eduardo Medeiros eram quase todos músicos. "Nos reuníamos na sala para tocar e cantar, depois da ceia", recorda. A filha mais velha de Dona Iracema, Lucy de Medeiros, 80, complementa: "Meu avô tanto tocava quanto solava. Foi até professor do filho de Cascudo, Fernando". Mas a vaidosa Iracema ressalta: "O negócio dele era mesmo musicar poema". E não à toa foi parceiro musical de alguns dos maiores literatos da cidade, a exemplo de Auta de Sousa, Palmyra Wanderley, Tonheca Dantas (compositor de Royal Cinema), e outros".
Além dos choros, valsas e modinhas, Eduardo Medeiros também compôs música sacra, como o Hino da Irmandade dos Passos, feito m homenagem aos 100 anos da congregação. Foi mestre durante muito tempo da Banda Café Filho, segundo Leide Câmara, em seu Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. Para a pesquisadora, a despreocupação de Eduardo Medeiros em registrar suas composições no papel foi influência da tradição oral do período, o que dificultou o trabalho de Cláudio Galvão, que encontrou 19 delas, inseridas no livro A Modinha Norte-rio-grandense - relíquias de um compositor pouco lembrado e uma filha resistente em manter viva a melódica Praieira.
* Publicado domingo no Diário de Natal
- Foto: Fábio Cortez
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