terça-feira, 18 de março de 2008

Quando poderia ter sido...

De certo, a leitora Bella cruzou com a poesia de Bandeira e nunca mais esqueceu: “A vida que poderia ter sido e não foi...”. No texto passado expus alguns dos meus desejos. Talvez por isso, e como se este escrivinhador angariasse uma lasca daquilo tudo, a leitora perguntou: “E o que você foi e não é mais?”. Pois digo:

A saudade é de pedra, amiga leitora. O passado é mesmo aquela velha roupa colorida de Belchior. As lembranças do ontem, mesmo em preto e branca, parecem mais alegres, como o verão. É que a vida é um eterno recomeço. O desejo, as vontades, são mutantes esfomeados. E confesso: nunca procurei saciá-los em sua plenitude. Daí talvez uma vida desventurada, perfumada pelas frustrações.

Kierkegaard dizia que um amante seria capaz de falar sobre sua amada dias a fio sem se cansar. Pois assim carrego a vida. Gosto do observar. Analiso cenas cotidianas e comportamentos. É um ofício costumeiro incorporado à minha rotina de minutos congelados. Talvez daí tanta melancolia. Por isso, reafirmo: desde sempre sou este inseto kafkiano cheio de culpas e traumas. Se algo de mim foi apanhado pelos braços seguros do passado, foi a mania de sonhar.

E viver é melhor que sonhar. Não nego a necessidade das ilusões. Elas são urgentes para aliviar a tensão da rotina. Mas a mania de sonhar é perigosa. A ilusão é uma astuta espiã dos segredos da alma. Capta seus desejos mais sublimes para aprisionar a existência no cárcere das vontades impossíveis. E sou um ex-apenado. Detenho o crime de alimentar ilusões de uma vida de aventuras e glórias.

Para ser claro: fui um sonhador. Talvez por isso, as recordações de um passado colorido. Os chãos duros da realidade presente são sempre mais dolorosos. É que a saudade guarda nostalgias gostosas, mesmo com o amargo das lembranças de nunca mais. É certo que recordar cenas do ontem também é deixar-se iludir. Mas a saudade é diferente dos desejos materialistas que aprisionam o caminhar natural nas celas da ambição ou da ânsia frustrante. Na saudade há a dor, da ausência ou da presença. E a dor, amiga leitora, protege a alma da simples ilusão.

Se descrevi o que fui, Bella, concluo com o que sou: apenas aquele vizinho do outro quarteirão. Um morador antigo de uma mesma esquina. Sou aquele que observa calado e coleciona auroras. Já sonhei com aquelas cenas de novela e até ensaiei derrubar os livros da garota bonita. Mas sou mesmo aquele que passa ao lado e grava o instante para imaginar depois o romance de uma vida ladeada pela moldura do amor sublime. Ora, e pra que negar: o que seria isso se não o sonho de uma vida de aventuras?

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