sábado, 28 de março de 2009

Há dois anos morria o dotô do sertão

“Essa página bem poderia estar empoeirada ou melada de um barro molhado que moldou a personalidade de um sertanejo nato. Numa hipótese mais utópica, essa página poderia voar solta e perdida entre os chãos arenosos do Seridó potiguar; lá para as bandas de Serra Negra do Norte, onde nasceu um doutor com diploma de sertão, chamado Oswaldo Lamartine”. Com estas palavras comecei a entrevista feita com o dotô, meses antes de sua morte, há exatos dois anos, neste mesmo 29 de chuvas e de março. Foram suas últimas palavras publicadas em jornal.

Oswaldo Lamartine atirou em seu desgosto e matou 87 anos de sertão. De relance, arrancou o cacto bem plantado no meu peito e deixou um chão rachado em minh’alma. A figura magra, esbelta e ativa como o Dom Quixote de Cervantes foi maior que qualquer livro. Lamartine foi o retrato vivo de tradições perdidas; de costumes esvaídos. Era a essência da simplicidade sertaneja. Foi nele onde descobri meu sertão particular.

Quando criança pensava no sertão como invenção de poeta. Era um mundo livre, sem fim, de pássaros e céus estrelados. Os costumes fugiam da obrigação da atividade escolar e dos livros de aritmética. A crueza da seca me chegou pelo noticiário. Depois pelos livros. Redescobri meu sertão ao assistir a fragilidade daquele homem estendido na cama de um flat. Era um fóssil vivo de uma história perdida. Um homem do passado, preso na redoma do progresso do tempo-hoje.

No decorrer da entrevista fui percebendo a importância do momento. Já conhecia o personagem e a classificação de segundo maior nome da cultura potiguar, atrás apenas daquele que talvez seja o primeiro do país: Luís da Câmara Cascudo. As novas percepções decorreram da surpresa em presenciar ali a materialização da simplicidade pura, escassa hoje, mesmo entre os sertanejos, como o próprio Oswaldo respondeu, na última pergunta que fiz: “Sei que a pergunta é complexa. Mas o que é o sertão para o senhor?”. E a resposta veio espaçada: “Ô meu filho... (longa pausa). É um mundo que se foi”.

Neste parágrafo, reproduzo as linhas publicadas a respeito da visita deste repórter ao sertanista: “A visita é feita de surpresa, numa quarta-feira à tarde, no flat onde mora só há oito meses, em Petrópolis. Iniciava-se o segundo tempo do jogo de futebol da seleção brasileira contra a Noruega. A enfermeira que o acompanha diariamente, durante as manhãs e tardes aponta o quarto onde está o escritor. Nem bem aponta, Oswaldo grita um ‘pode entrar’ contido. É que há três anos foi operado e hoje sofre dificuldades de deglutição e de fala. Os pigarros são constantes. O escritor vestia roupas leves. Após um aperto de mão firme que contraria o aparente corpo magro e debilitado em função da doença, ele se desculpa por receber o repórter daquela maneira: ‘um lixo hospitalar’. Parece contrariado pela impossibilidade de proporcionar a recepção característica dos sertanejos”.

Ainda lembro bem: Lamartine pareceu mesmo contrariado com a visita em horário de jogo. Ao fim da entrevista, quando se aproximava o fim da partida, pedi um autógrafo. Ele perguntou meu nome. Olhou depois para a televisão e perguntou quem jogava contra o Brasil. E continuou a escrever o autógrafo, mesmo sem os óculos, postados ao lado da cama. Saiu assim: “Ao Sérgio, que veio me ver no decorrer do jogo Brasil x Noruega VIII/06”.

Em papo informal de despedida, confessou: “Rapaz, só estou esperando a morte, que não chega; a caetana”. Mas a lucidez do escritor impressionava. Talvez por isso enxergasse uma modernidade indesejada, destruída pelo progresso infame. Passaram-se alguns meses após aquele encontro. Sua fonoaudióloga, minha conhecida, cobrava nova visita com o argumento infalível do pedido de Lamartine para novo encontro, mesmo que sem entrevista, apenas para conversar. Mas essa pressa selvagem que nos rouba pedaços de vida impediu mais esta prosa.

Na noite daquele 29 de março, recebo a notícia da própria fonoaudióloga, Catarina. Oswaldo Lamartine havia se suicidado. Morreu de tristeza, de saudade de sua Acauã; de seu sertão. Fez lembrar outro potiguar ilustre: Djalma Maranhão. Ambos morreram exilados. O eterno prefeito morreu de saudades de Natal, exilado no Uruguai pela ditadura militar. Em um aspecto os dois se distinguiram. Djalma teve um enterro à altura de sua importância. Milhares de pessoas cercaram o Cemitério do Alecrim em uma das cerimônias fúnebres mais populares da história de Natal.

O velório ou enterro de Oswaldo Lamartine foi ao seu jeito: simples, discreto, longe da relevância que foi como intelectual, como escritor, etnólogo, sertanista, pesquisador; como homem simples. Lamartine soube enxergar alguns segredos da vida. Daqueles mais segredáveis, reservados aos de sabedoria, não aos de conhecimento. Coisa para quem soube vencer as forças inexoráveis do progresso e não se deixou tragar pela atmosfera invisível e nervosa da metrópole.

3 comentários:

  1. Massa, Vilar! Me recordo da entrevista naquele tempo, muito boa, por sinal. E esta crônica foi uma homenagem de peso dois anos depois... acho que só o DN lembrou, heim?

    valeu a intenção e a lembrança!!

    ResponderExcluir
  2. sérgio vilar:
    chego aqui pelo moacy cirne.
    um abraço.
    romério

    ResponderExcluir