Por Jairo Lima
no site Papo Furado
Sob o título “Duas elites”, o “Rascunho” traz um bom artigo de Luiz Bras (mais conhecido como Nelson de Oliveira) sobre a guerra entre alta literatura e literatura de gênero. Trata-se – e o autor é o primeiro a admitir isso – de uma caricatura, um quadro em preto e branco que ignora “todas as gradações, todos os matizes”. Isso não diminui o valor do texto. Caricaturas são perfeitas para expor o ridículo de personagens e situações. Como se pode ver pelas listas de “critérios” dos dois lados que Bras expõe:
Critério da elite acadêmica:
1. Linguagem original, conotativa, que não possa ser atribuída a outros escritores do presente e do passado, por vezes avessa à norma culta. O autor deve se expressar de maneira única, inaugurando seu próprio modo poético.
2. Subjetivismo. Narrador modernista, tortuoso ou fragmentário, psicológico, pouco confiável, às vezes delirante.
3. Enredo frio, pobre em ação, sem muitas peripécias ou surpresas, próximo da vida comum. A forma literária é mais importante do que o conteúdo.
4. O mundo interior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo exterior.
5. Fuga do gênero a que (supostamente) pertence. Faz parte do desejo supremo de originalidade a rejeição das principais diretrizes do gênero a que a obra pertenceria. O novo romance quer transcender os limites do gênero romance, o novo conto quer transcender os limites do gênero conto, o novo poema quer transcender os limites do gênero poema.
6. Purismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, são violentamente rejeitadas pelo sistema.
Critério da elite da literatura de gênero:
1. Linguagem transparente, denotativa, por vezes complexa, mas ainda assim reconhecível por uma vasta gama de leitores. O autor deve se expressar respeitando a norma culta que orienta o uso do idioma.
2. Realismo. Narrador clássico, organizado e disciplinado, pouco introspectivo, confiável, onisciente.
3. Enredo quente, rico em ação, cheio de peripécias e surpresas, afastado da vida comum. O conteúdo literário é tão importante quanto a forma, ou até mais.
4. O mundo exterior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo interior.
5. Adequação ao gênero e ao subgênero a que pertence. O romance ou o conto policial, de fantasia ou de ficção científica respeitam as balizas que definem o gênero e o subgênero a que pertencem.
6. Ecumenismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, se não são bem aceitas pelo sistema, ao menos não são sumariamente rejeitadas.
Esse retrato simplificado da velha cizânia entre arte erudita e arte popular me parece, mais que divertido, bastante acurado, embora seja duvidoso que a literatura de gênero tenha força suficiente no Brasil para sustentar uma elite propriamente dita.
Mas o quadro é triste também. Para mim, reside justamente no que o artigo suprime – as tais gradações e matizes – a graça da coisa. Se é verdade que a literatura “metida a besta” e a literatura “comercial” pretendem, a esta altura do século 21, permanecer afundadas em suas trincheiras com o dedo no gatilho, quero morrer no fogo cruzado.
É por isso que achei brilhante a idéia de uma antologia de contos policiais chamada “The dark end of the street”, que acaba de sair nos EUA: reunir num mesmo volume autores firmemente plantados no gênero, como Lawrence Block e Val McDermid, e escritores “literários” como Amy Hempel, Francine Prose e Edmund White. Viva os agentes duplos!
• A discussão entre arte erudita e popular é tão boba quanto interminável. Por erro de foco. Ora, ambas as formas são legítimas e não-excludentes. O equívoco está em tratá-las como se tivessem o mesmo valor. Ou desconhecer as fronteiras profundas entre elas.
Jairo Lima
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