Os argumentos abaixo são da competente antropóloga, Julie Cavignac - atualmente morando na França. A entrevistei em 2005 para uma matéria a respeito do mesmo assunto: a invasão imobiliária de resorts e hoteis na praia de Sibaúma que ferem o código ambiental e até mesmo a área quilombola, protegida pelo Governo Federal. O impasse na região era tenso já naquela época. Eu mesmo fui ameaçado pelo quilombola que me acompanhava porque também procurei empresários para ouvir suas versões. Segue o email da antropóloga:lmo(a). Sr.(a)
Recebi a informaçao do site do Resort "Nova Pipa" a ser implantado na comunidade quilombola de Sibauma que entrou com processo junto ao INCRA em 2005 e cuja área a ser titulada ainda encontra-se em discussão. O site do Resort: http://novapipa.com.br/
Além disso, me parece que o projeto em questao a ser instalado na orla maritima e na embocadura do RIo Catu fere o Código Florestal (Lei no. 4.771, de 15 de setembro de 1965), artigo 2o, alínea “a”, item 1, que estabelece como área de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal, com largura mínima de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez)metros de largura.
Vejam o parecer conclusivo do relatorio antropologico elaborado em 2006:
"A titulação coletiva da terra foi vista, após haver várias reuniões públicas, como uma necessidade, em primeiro lugar, para consolidação do grupo cuja integridade encontra-se hoje ameaçada. Entre as razões evocadas, precisa ser destacada a importância do território tradicional na vida cotidiana, pois a coesão social passa necessariamente por um compartilhamento de um espaço comum, permitindo a inscrição material da história do grupo e o uso comum da terra; como vimos, o uso coletivo do espaço natural e cultivado foi, durante o passado, uma estratégia escolhida para que o grupo se mantivesse no local, a terra aparecendo como essencial para a subsistência das famílias e a reprodução dos valores comuns.
Para as famílias quilombolas, a titulação irá assegurar o domínio e a posse de suas terras tradicionais. Além de suprir as necessidades econômicas do grupo, a terra tem um valor histórico-cultural inestimável: o território sustenta os processos que visam o reconhecimento e a elaboração de uma história diferenciada em nível local. Garante a continuidade das famílias quilombolas, sua reprodução física, além de permitir o reconhecimento político e a valorização de um grupo historicamente marginalizado e que continua ser alvo de preconceitos.
Como já mostramos, a identidade coletiva deve ser levada em conta na questão fundiária: elementos diferenciais como a identidade étnica, a ancestralidade comum, as formas de organização social e política distintas, os elementos lingüísticos e religiosos devem entrar em consideração na discussão da demanda territorial a ser realizada pelos quilombolas.
Como mostra a pesquisa histórico-documental e com referências à memória genealógica, Sibaúma é ocupada de maneira contínua desde, pelo menos, os meados do século XIX, com contínuos conflitos territoriais. Temos, também, documentos declaratórios de cadastro de imóvel rural datados de 1978 e 1981, em nome de moradores da comunidade, atestando uma ocupação agrícola que foi que historicamente interrompida a partir dos anos 1980.
A titulação do território da comunidade quilombola de Sibaúma se adequa ainda aos objetivos do Programa Brasil quilombola, que visa a melhoria das condições de vida e ao fortalecimento da organização das comunidades remanescentes de quilombos por meio da promoção do acesso aos bens e serviços sociais necessários ao desenvolvimento, considerando os princípios sócio-culturais dessas comunidades. As políticas públicas a serem implementadas devem ser voltadas para o desenvolvimento da comunidade, respeitar a singularidade cultural do grupo e as práticas sociais tradicionais e comunitárias.
Das razões para titulação:
1. A ocupação ancestral do território pelo grupo foi comprovada documentalmente e pela pesquisa etnográfica. Apesar de não haver títulos de propriedades emitidos em nome dos quilombolas, existe um uso contínuo do território requerido; o que tem como conseqüência a aplicação do direito constitucional. Até a década de 1980, a população tirou seu sustento do rio (água potável e pesca), dos terrenos cultiváveis e das matas nativas. A partir dessa época, os moradores sofreram pressões por parte do atual proprietário da [WINDOWS-1252?]“Agro Comercial de Bovino ldta.” (Milson dos Anjos) para sair dos seus lugares tradicionais de moradia e foram impossibilitados de ocupar certas áreas indispensáveis à reprodução de um modo de vida tradicional, o que acelerou a desintegração do grupo;
2. Existem registros orais comprovados documentalmente apontando que, desde a década de 1920, houve uma pressão por parte dos herdeiros de Miguel Soares Raposo da Câmara (1838-1923) para vender partes do território ocupado pelas famílias quilombolas. Por outro lado, nos anos 1980, há comprovação do uso de má fé na cessão das terras por parte de compradores, entre outros, de Walter Soares de Paula;
3. A população local não pode usufruir plenamente dos recursos naturais necessários para o seu sustento (rio, mar, mata). Há mais de vinte anos, a comunidade sofre com as conseqüências de um desenvolvimento predatório, com o desmatamento da maior parte do seu território tradicional (Milson dos Anjos), de danos irrecuperáveis no mangue e no rio após a construção de viveiros de Camarão (Francisco de Assis Medeiros) e de uma exploração imobiliária desenfreada, o que representa um perigo para a integridade do grupo e sua reprodução. De fato, os quilombolas foram lesados com esses danos ambientais e por diversos compradores que cercaram os terrenos e o acesso ao rio. Devem ser indenizados;
4. As terras que foram cedidas por membros da comunidades e que encontram-se de posse de indivíduos externos à comunidade não atendem à função social da terra, pois não são produtivas e servem à especulação imobiliária. Por tanto, recomenda-se a aplicação da legislação em vigor para o benefício de uma população que encontra-se numa situação de risco social;
5. São necessárias ações urgentes visando a preservação do meio ambiente que encontra-se seriamente degradado e a aplicação das diferentes legislações ambientais, pois parte da comunidade esta situada num parque estadual, numa APA e em terras da União (mar e rio). Também, recomenda-se que haja uma aplicação firme das leis ambientais no sentido da melhoria das condições de vida atuais e futuras das populações locais;
6. São necessárias ações urgentes de preservação de uma história e de uma cultura diferenciada, sendo do dever do Estado em preservar um patrimônio histórico nacional (sítios arqueológicos) e, conforme a legislação em curso, sobretudo àquele pertencendo a remanescentes de quilombolas ;
7. Recomenda-se que o processo em curso deve ser acompanhado por representantes de órgãos governamentais, no que diz respeito a discussão da proposta do território a ser identificado bem como elaboração de projetos coletivos. Também, é necessário que haja um empenho do poder público na aplicação das decisões judiciais já tomadas;
8. Finalmente, medidas devem ser tomadas para impedir que se continue a venda de terrenos na área em discussão, para frear a especulação imobiliária já importante."
E agora?
Julie A. Cavignac
Tel: (33) 05 56 90 00 69
Portable: (33) 06 45 99 25 45
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