domingo, 28 de fevereiro de 2010

Entrevista - Samarone Lima


Nas barbas do “profeta”

Livro a ser lançado em Natal retrata uma Cuba miserável e distante dos ideários socialistas

Longe de Cuba, a imagem do guerrilheiro Che Guevara ainda estampa camisas pelo mundo. É o retrato vitorioso da histórica revolução socialista liderada pelo comandante Fidel Castro. Há mais de 50 anos, esse cenário teima em permanecer atual aos esquerdistas mais radicais. Uma imagem desbotada pelo tempo e manchada de cinza pela penúria vivida na ilha comandada pelo mesmo senhor barbudo que anunciou o início de novos tempos – uma profecia cumprida e falida.

O livro Viagem ao Crepúsculo (Casa das Musas, 230 pág) parece escrito por conservadores de direita, invejosos da resistência socialista em Cuba. Não, não é. O jornalista Samarone Lima foi apenas um mochileiro aventureiro na ilha. Durante a eternidade de um mês vivenciou experiências únicas, mesmo para um viajado jornalista. A intenção foi mergulhar no cotidiano comum dos cubanos. Samarone se infiltrou nas periferias, morou em casas simples e acompanhou a luta diária por comida.

Um bloco para eventuais anotações e muitas canetas foram as únicas ferramentas utilizadas. A intenção inicial foi apenas a viagem, sem maiores registros literários ou jornalísticos. Mas a coleção de frustrações, misérias, proibições e revoltas contidas provocou um turbilhão de sensações no jornalista e o conseqüente retrato da Cuba no último ano de Fidel Castro no poder, hoje tomado pela mesma ideologia opressora, comandada pelo irmão, Raul Castro.

A realidade cubana descrita pelo biógrafo Fernando Morais ou frei Betto são distantes da verdade descrita no livro de Samarone (a ser lançado nesta semana em Natal, com local e data ainda indefinidos), de blogs clandestinos de estudantes cubanos, do depoimento de residentes brasileiros e dos próprios “ilhados” da terra de Fidel. Mesmo a saúde – vendida como exemplo ao mundo – integra o hall de serviços e produtos financiados pelo mercado negro em Cuba. Para fugir da repressão ditatorial e conseguir mais do que um pedaço de galinha ao dia, a clandestinidade se tornou a principal moeda do país.

Algumas frases da brasileira Malena, há três anos em Cuba, resumem a situação do país: “Em função de uma soberania, de um sistema político que já dura 50 anos, o povo cubano está perdendo a alma”. “Samarone, o sistema político aqui não é mais comunista, socialista ou capitalista. É uma zona mesmo”. Ou da cubana Celeste, que hospedou o jornalista: “Como é que as pessoas vão pensar em política, discutir, questionar algo, se não têm o básico, se amanhecem e dormem pensando em ter o que comer?”.

Samarone não arrisca uma saída para a situação cubana, se a abertura ao capitalismo menos conservador ou um socialismo menos ditador: “Voltei de lá sem saber como eles vão sair dessa, e o que virá depois. Tudo o que espero é que consigam algo mais modesto e bom, que é viver bem, e com liberdade”. E pondera, a despeito da eficácia do sistema socialista: “Essa coisa do totalmente igualitário é um sonho de milênios. No meu país, ficaria mais feliz se a riqueza fosse distribuída de uma forma inteligente. Todos viveriam bem melhor”.

Entrevista – Samarone Lima

No livro você ressalta que esteve em Cuba como mochileiro. No entanto, Cuba é desmascarada ao leitor de forma detalhada, despida de uma visão aventureira. Se a viagem fosse a trabalho, o livro sairia diferente, com mais ou menos riqueza de detalhes?
Se eu tivesse viajado a trabalho, como jornalista, não teria material sequer para uma boa reportagem, quanto mais para um livro. Como não há liberdade de expressão ou de Imprensa, em Cuba, ninguém iria me contar nada, se soubesse que eu era jornalista. Seria correr um risco desnecessário. Ninguém também iria hospedar, clandestinamente, um jornalista em casa. O que me rendeu todo o material foi a vivência cotidiana, as conversas, amizades, as descobertas. É contraditório isso. Só consegui um material jornalístico, boas fontes, informações privilegiadas, porque era um não-jornalista, que não ficava fazendo perguntas ou tirando fotos. Foi uma cubana quem me conseguiu internet clandestina, táxi clandestino, os cubanos me contaram diariamente como era a vida e como funcionava o sistema. Tive que exercitar um jornalismo sem perguntas, resgatando a possibilidade de descrever cenários, pessoas, resgatar diálogos etc.

Comente a feitura do livro. Imagino anotações rabiscadas, escritas em bares de Cuba, muitas vezes após tomar pileques ou horas depois de ter ouvido ou visto relatos, cenas cotidianas. Foi difícil organizar esse retrato tão minucioso e humano da Cuba atual?
Muitos leitores me contam que leram de uma vez, foram agarrados pelas minhas andanças em Cuba, que viajaram comigo. Mal sabem dos quatro cadernos cheios, com colagens, trechos iniciais, frases, lembranças de conversas, que eu não podia anotar na hora. Foi um grande exercício mental, não puxar um bloquinho de anotações e começar a registrar tudo. Na volta, passei três semanas no Rio de Janeiro, só passando tudo para o computador. Não queria perder o foco. Quando estava nesta primeira versão geral, um mês depois do retorno, o Fidel Castro renunciou. Pelo que eu sabia da viagem, nada iria mudar, com a ascensão do Raul Castro, a não ser o aumento da repressão. Então trabalhei muito o texto, cortando, tentando melhorar, revisando. Da volta de Cuba até o lançamento, foi um ano e meio de luta com o livro. Tenho a última versão, antes da impressão, é toda rabiscada. Resumindo: foi muito difícil sim, escrever o livro. Como Cuba ainda é uma coisa mítica aqui no Brasil, tem gente que se recusa até a discutir, eu não podia passar do ponto. Tentei ser o mais fiel possível ao que vi e vivi.

Verdade que só a Casa das Musas aceitou a publicação do livro? Em quais outras editoras houve rejeição? E qual a explicação dada?
É verdade. Quando voltei de Cuba, conversei com o pessoal da editora Objetiva. Como eu tinha publicado o Clamor por lá (em 2003), julguei que seria mais fácil emplacar este novo livro, porque eles gostaram de mim e do meu trabalho, creio. Eles receberam os 15 primeiros capítulos e fizeram uma avaliação que considero um equívoco editorial imenso. Achavam que se o Fidel morresse, o livro ficaria datado, perderia a importância, essas besteiras do senso comum. Fiquei realmente surpreso, mas eu sabia que tinha um material precioso, nem desanimei. Depois que terminei a última revisão, mandei para cinco grandes editoras, que foram evasivas ou não responderam. Então a Casa das Musas se interessou, e gosto muito desse negócio de editora pequena. Tudo foi feito com muito cuidado, paciência, fomos dialogando, até que o livro ficou pronto. Já vamos à segunda edição, e devagarzinho estamos fazendo o livro andar. Tenho participado de ótimos debates sobre Cuba, mostrando um pouco o outro lado da ilha, que muita gente se recusa a ver ou debater. Viagem ao Crepúsculo foi uma aventura que trouxe grandes alegrias.

* Matéria publicada, em parte, no Diário de Natal desde domingo

2 comentários:

  1. Para iniciar meu comentário, já faço uma confissão: eu sou, sim, uma sub-sub-sub intelectual de classe média que sempre teve uma grande simpatia pela idéia da resistência. Simplesmente acho bonita a idéia de resistir: ao consumismo, aos EUA, enfim. “Admiração da estética da miséria, alienação, desconhecimento da opressão sofrida pela população, falta de dados concretos sobre a motivação real dessa resistência (afinal, a população não foi consultada sobre se deseja resistir ou não)”. Eu mesma tenho mil argumentos para combater essa minha simpatia e me tachar de ingênua e até leviana. Mas não posso negá-la.
    Eu li a entrevista que saiu na Veja com a blogueira Yoani e li agora essa entrevista muito interessante que você publicou; pretendo também comprar o livro. Mas o que eu acho é o seguinte. A falta de liberdade para escrever, falar, protestar, e até para sair do país é algo terrível. Eu quero visitar Cuba, mas confesso que não queria viver em um lugar assim. Só que, por outro lado, quando se fala em Cuba atualmente, pinta-se um inferno contrastando com o paraíso dos países livres. Yoani, ao ser questionada sobre o fato de cerca de 97% (salvo engano) da população cubana ser alfabetizada, disparou: é, mas antes da revolução o índice já era alto, Fidel só fez ensinar mais algumas pessoas a ler. Ora, convenhamos: ele não só sustentou esse nível de alfabetização como aumentou. Só o fato de sustentar não é fácil. Ela diz, também, que os alunos só lêem coisas do governo, sobre a guerrilha, e que é impossível formar espírito crítico desse jeito. Mas então eu pergunto: e ela, Yoani, onde teve a sua formação? Por acaso não foi em Cuba? Ela menciona ainda que a saúde, apontada como exemplo, está um caos, e a família dos pacientes tem que levar a gaze, o algodão, o remédio etc. Bem, meu comentário é o seguinte: qualquer semelhança com o SUS aqui no Brasil não é mera coincidência.
    Enfim, o que eu quero dizer é que, se o repórter fosse fazer essa mesma experiência de mochileiro nos confins do sertão, ou numa favela carioca, iria ter experiências semelhantes, ou bem piores. Cuba também é aqui. A miséria, a falta de estrutura, tudo isso também está presente no Brasil. Ok, mas ao menos podemos falar mal. Isso é uma grande vantagem, sem dúvida. Porém se partirmos para uma análise mais abrangente, veremos que a repressão ideológica também existe aqui. Ta bom, talvez o termo “repressão ideológica” seja muito forte e muito datado. Mas somos vítimas da manipulação de informações (jornaizinhos para “Homer” ver), de meios de comunicação tendenciosos e de diversas ditadoras invisíveis (perguntem aos psicólogos!!!). E a educação equivocada, incapaz de formar um senso crítico no cidadão...ora, vamos lembrar um exemplo recente: foi constatado que havia na rede pública livros didáticos com violência, palavrões, xingamentos...
    Enfim, Cuba está bem distante do paraíso, mas o Brasil também. Creio que só teremos idéia da situação real quando Raul Castro largar o osso, mas esse livro já é um bom começo.

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