quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Arte articulada

Artistas se reúnem para discutir descaso governamental com o setor e reivindicam milhões do Foliaduto

O velho e o novo se encontraram ontem no auditório do IFRN. As reclamações de falta de apoio governamental à classe artística parece herança da Era romana de tão antiga. Na manhã de ontem – e como nas últimas reuniões a respeito do tema – o tema ganhou novos contornos. Artistas pretendem revirar catacumbas escondidas no oceano burocrático da Justiça para desafogar o escândalo do Foliaduto. A intenção é apontar, definitivamente, o verdadeiro culpado no episódio e reaver os R$ 2,3 milhões pagos a bandas fantasmas. O dinheiro serviria para desobstruir a endividada Fundação José Augusto e pagar meses de cachês atrasados a diferentes representações das artes do Estado.

Artistas reclamam cachês atrasados em valores abaixo de R$ 2 mil. O produtor cultural Nelson Rebouças ameaçou suspender o projeto Poticanto – Um Canto 100% Potiguar por falta de apoio: cerca de R$ 4 mil por edição. Na contrapartida das “dificuldades” burocráticas enfrentadas para tais pagamentos sem necessidade sequer de licitação, estão os montantes milionários para promoção de atrações baianas pagos, muitas vezes, antecipadamente. O recente Verão de Todos custou aos erários públicos R$ 1,5 milhão, inclusos o cachê, montagem do palco e show gratuitos de artistas como Ricardo Chaves, Daniela Mercury, Margareth Menezes e Cavaleiros do Forró.

O valor foi definido em convênio assinado em 23 de dezembro entre a Empresa de Promoção Turística (Emprotur) e a Associação Brasileira de Indústrias de Hotéis no RN (ABIH). Segundo o presidente da ABIH, Henrico Fermi, a motivação do convite aos artistas baianos de renome nacional foi a atração turística. “Estados vizinhos concorrentes no turismo montaram programação talvez ainda maior se comparadas as atrações. Em João Pessoa, por exemplo, houve show com Chiclete com Banana. Então, não podíamos ficar atrás”. Fermi justificou ainda que o crescimento de 12% no turismo verificado em 2009 foi bem representado pelo acréscimo de turistas das classes C, daí a oferta de shows gratuitos como atrativo.

Ao tomar conhecimento do valor de R$ 1,5 milhão pago aos artistas baianos, o músico potiguar Júlio Lima foi enfático: “Não conseguimos um valor deste nem roubando”. Nelson Rebouças pretende reacender o episódio do Foliaduto: “A Fundação José Augusto está endividada. Os R$ 2,3 milhões do Foliaduto serviriam para quitar dívidas antigas e pagar 11 dos 12 editais aprovados em 2008 e até agora sem pagamento”. O processo do chamado Foliaduto está sob a guarda do Supremo Tribunal de Justiça. Segundo o advogado Alisson Almeida, “tudo lá é meio lento e a expectativa é de que a sentença seja mesmo demorada”, mas sem risco de arquivamento, já que houve o indiciamento da parte do Ministério Público dos supostos envolvidos no caso.

Identidade musical
O produtor Nelson Rebouças culpa a histórica falta de apoio aos músicos potiguares e conseqüente falta de identidade musical. “O turista visita Salvador para comer acarajé, assistir a capoeira e escutar música baiana. Aqui, o turista come jerimum, ginga-com-tapioca e escuta a mesma música baiana. Pagam R$ 221 mil ao padre Fábio ou outros muitos milhares de reais aos artistas nacionais e atrasam o pagamento mínimo dos nossos artistas. Como haveremos de ter identidade musical? A qualidade é riquíssima”. Segundo o músico Júlio Lima, um ex-produtor do pernambucano Lenine e representante da Feira da Música, afirmou ter concedido o prêmio Pixinguinha aos potiguares Esso Alencar e Valéria Oliveira por “caridade”.

Júlio aponta ainda o total obscurantismo das entidades responsáveis pela assistência ao músico e a desunião histórica da classe pelo atual momento de crise no setor no Rio Grande do Norte. “A Associação dos Músicos é obsoleta. A Organização dos Músicos do Brasil (OMB), também, pelos próprios limites constitucionais já que foi elaborada durante o período ditatorial. E nós, músicos, também somos culpados pela inércia na discussão de políticas públicas e iniciativas capazes de reverter esse quadro de penúria, muito aquém da organização vista no eixo Rio-São Paulo”.

Mais de 100 artistas presentes
Circularam pelo auditório do IFRN (unidade da Cidade Alta) mais de 100 artistas dos segmentos de música, teatro, circo e dança. Foram promovidas reuniões gerais, setoriais e, em seguida, sobre temas comuns a todas as artes, como o atraso no pagamento de cachês e dúvidas jurídicas. Uma assessoria jurídica foi convidada e está à disposição dos artistas. Segundo o advogado Pablo Pinto, há uma negativa forte de transparência a respeito da contingência de verba e transparência da emissão da nota de empenho relacionada aos pagamentos dos cachês. “Sugeri que cada um solicitasse por escrito o trâmite do pagamento, que imprimam o extrato pela internet e verifique onde está o despacho”.

Segundo o fotógrafo e diretor da República das Artes, Lenilton Lima, a reunião – que contou com a presença da ex-secretária de Cultura de São Gonçalo do Amarante e professora de Filosofia da Facex, Maria Tereza de Oliveira – serviu para elaboração de uma carta de protesto e organizar as próximas reuniões, agora setoriais. Uma associação desmembrada de setores artísticos deve ser formada. Um dos propósitos principais é a promoção de seminário nos próximos meses para uma discussão mais aprofundada e chamar a atenção dos governantes e da mídia.

* Íntegra do texto publicado hoje no Diário de Natal

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