quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Um rabequeiro solitário


Rabequeiro esquecido durante décadas ganha fama após a morte na província

A rabeca tem som fanhoso, rústico. É o primo pobre do violino. Quem escuta viaja pelo Cariri nordestino e encontra cirandas, xaxados, brincadeiras de roda. No último domingo, uma rabeca se calou. Ela era como seu dono: de melodia triste, surrada; parecia perdida na selva de pedras, longe do interior conhecido. André da Rabeca mais parecia uma estátua, dessas que de tão habitual à paisagem sequer é notada. Não fosse o som da rabeca tão triste quanto seu olhar, morreria feito indigente. E faltou pouco.

André lembrava pouco de sua própria história. Vivia perdido no tempo. Quando se achava era nas quatro cordas da Rabeca – quase uma namorada. Falava pouco e era difícil de entender. O olhar, mesmo estrábico, falava mais. E os olhos pareciam guardar as tristezas dos poetas nascidos tristes. Das lembranças insistentes, o nascimento no município de Santo Antônio do Salto da Onça, e a idade: 67 anos. Dizia também ser casado. Os três filhos moram no sítio da família, em Mendes. Lá, o rabequeiro cuidava do roçado quando moço.

André morava em Mãe Luíza antes do enfisema pulmonar fatal de sábado. Era para onde voltava após assistir durante algumas horas casais e famílias na sorveteria mais tradicional da cidade. Lá, sentado em bancada de alvenaria, dedilhava a rabeca esporadicamente. Tocava cirandas ou clássicos da música popular nordestina. Conseguia algum trocado, despejado em um boné velho. O dinheiro às vezes pagava o almoço do outro dia. Só às vezes. Era assim também no outro ponto fixo, na Cidade Alta, nas imediações da Princesa Isabel. Lá, o rabequeiro sentava no meio-fio da calçada e tocava para os passantes que só passavam.

Talvez, na juventude esquecida, nunca imaginara ganhar o sustento pela rabeca que sequer lembra como aprendera a tocar. De certo, alguma influência pernambucana. Muitas canções vêm de lá. A mulher não trabalha. Quando surge alguma encomenda, produz tamborete, mesa, cama... Foi o que André disse à revista Brouhaha em junho de 2008. Já naquela época, a repórter Patrícia Britto notara a cuspideira constante de sangue. André afirmara ter passado “um tempo no Hospital Colônia João Machado, e depois no Giselda Trigueiro”.

Há bons meses, o repórter o encontrou no recanto habitual, na bancada da sorveteria. Era noite. O olhar era o mesmo, fixo em qualquer canto. Parecia perdido à procura do passado ou angustiado quanto ao futuro. Talvez fosse mesmo seu olhar naturalmente melancólico. Ao pedido de qualquer música de Lua Gonzaga, o rabequeiro encosta a rabeca descascada no pescoço e desliza o arco de crina sobre as cordas. Vem apenas a introdução de Asa Branca. André pára de súbito e volta ao olhar fixo, perdido. O repórter coloca a moeda no boné e após a saída do local, o rabequeiro retoma a música. Pareceu agradecimento pelo pouco ou quase nada.

Afora a matéria da Brouhaha, André nunca mereceu atenção da mídia. Tão logo se espalhou a notícia de sua morte, o microblog publicou lembranças do esquecido rabequeiro: “uma triste notícia”. “A maior perda da cena cultural natalense desde Milton Siqueira”... No youtube, um vídeo gravado pelo paulista Ayres Marques – que marcou época em Natal nos anos 80, com o movimento cultural Babilônia – ultrapassou rapidamente os mil acessos. Mostra André Rabequeiro em performance no Dia da Poesia.

Em poucos dias, André da Rabeca será mais um José Helmut Cândido (o eterno carteiro de Cascudo, o filósofo das ruas), mais um mero personagem intrigante da história da província, esquecido ou apenas lembrado como uma imagem desbotada no meio da rua.

* Matéria publicada hoje no Diário de Natal (foto de João Maria Alves extraída do blog de Canindé Soares)

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