terça-feira, 30 de março de 2010

Estirado no estirâncio


Carito lança experimentações poético-sonoras em DVD e CD e fala dos novos tempos da música e dos Poetas Elétricos

Estirâncio é aquela faixa de terra deixada pela maré quando seca, usada pelos românticos para rasgar a carne da areia com rabiscos amorosos. É lugar de sombras de guarda-sóis, de descanso e lazer, sem sombra de dúvidas. Mas na poemúsica, “estirado no estirâncio” é, na verdade, o título do último CD do Poetas Elétricos e do mais novo clipe da banda, comandada pelo irrequieto poeta musical Carito. A nova fase do Poetas Elétricos – agora sem a terceira voz do plural – vem também acompanhada de CD e DVD só de músicas inéditas previsto ainda para este ano.

Carito e seu Sancho Pança, o químico-guitarrista responsável pelos ácidos eletrônicos e misturas de liquidificador, Edu Gómez começaram a compor músicas inéditas para confecção de um novo tecido musical: um DVD chamado Breves Incandescências – um trabalho curto e denso. “Pensamos em uma retrospectiva da nossa carreira, usar velhas sobras, mas decidimos pelas novas sombras, meio intimista, elemento fogo, com mais guitarras e poemas curtos”, brinca Carito. E a forma de difusão midiática do novo trabalho sinaliza novos tempos...

Antes, o poeta explica o formato do DVD: “Vamos filmar um show sem platéia. Acrescentar imagens extras, externas, agregando o conceito de videoclipe ao formato do filme-show, gerando certa ambiguidade - uma viagem que gera outras. E nos Extras do DVD colocaremos outros videoclipes específicos, de poemúsicas de CDs anteriores - como o videoclipe Palavreando (dirigido por Mário Ivo, vencedor do Curta Mada 2006), o videoclipe Maria Elétrica (animação feita por Joanisa Prates & Cia.), e esse agora que acabei de dirigir: o videoclipe Estirado no Estirâncio”.

Com Carito

Contrabandeando pensamentos
“Nessa minha trajetória artístico-musical, eu vim de duas bandas de rock: Fluidos (início dos anos 80) e Modus Vivendi (meados dos anos 80 a final dos anos 90). Sempre foram casamentos artísticos, de altos e baixos. Muita gente, muita necessidade de conciliar, alguém tem que ceder, alguém tem que exceder, e por aí vai, não vai, foi, não foi. Foi bom enquanto durou. Fizemos história. Acabou. Sumi. Não fui embora para Pasárgada, mas fui para Ponta do Mel pensando que eu era Rimbaud indo pra África, contrabandeando pensamentos”.

Poetas elétricos em ebulição
”Quando pintou a síndrome da abstinência artística, eu e Edu Gomez resolvemos resgatar um projeto perdido, que tínhamos paralelo ao Modus Vivendi, onde misturávamos de forma experimental música e poesia nas sobras das madrugadas e recitais alternativos. E foi desse resgate que surgiu Os Poetas Elétricos. O lance é que no princípio... no princípio era o verbo, oral, sexo oral, não pensávamos que íamos fazer amor com o público de maneira visceral de novo, leia-se palco”.

Artistas da contemporaneidade
”Minha alma sempre cheirou a palco, mas shows dão trabalho, dependem de muita coisa. E nós dois, dinossauros reinventados, queríamos dar vazão à poluição artística noturna, mas queríamos simplificar. Não necessariamente fazer coisas simples. Queríamos apenas gravar. Já que os tempos eram outros. Chegar aos outros pelo disco, pela internet. Afinal, o mundo tinha se tornado virtual. Antes a dificuldade de gravar era enorme, e nós apenas nos apresentávamos, muito. Com os novos tempos, vieram novos estúdios, novas linguagens que a nossa sede de pós-modernidade sempre quis saciar. Somos artistas da contemporaneidade”.

Sem a terceira pessoa do plural
”Queríamos ser só dupla, só ser, ser sós, processo fechado, isolamento, sem mais ninguém para dar satisfação, para a gente fazer o que der na cabeça, e dar no pé quando quiser. Os shows aconteceram por acaso, até porque queríamos transcender ao rock, ao estigma de banda de rock. Então, não sabíamos nem como apresentar em palco a nossa invencionice digital, nem estávamos tão preocupados com isso. E os shows, os convidados, as participações espaciais, surgiram de forma espontânea, como Michelle, que se tornou a terceira pessoa do plural. Ela e Edu acabaram se casando e agora se separaram, vida e arte, amor e dor”.

Dom Quixote e Sancho Pança
“Eu e Edu Gomez somos parceiros desde 1987, quando começamos a compor juntos, durante muitos anos na banda Modus Vivendi, depois n'Os Poetas Elétricos. Sentimos um grande prazer em criar juntos, temos uma química forte, uma máquina de criação azeitada, aceitada e acertada, uma sede de criar, uma sede do novo, uma sede de novo, pois ela se renova, sempre. Marcamos dia e hora para compor, e funciona. Há muito tempo é assim. Segunda às 19 horas. Começamos do nada e no final da noite, na madrugada temos um ou mais trabalhos criados, e é isso que nos excita, muito - sempre essa possibilidade do fazer artístico, do fazer também enquanto refazer. A dificuldade maior é abandonar a obra. Até que chega um momento onde a criatura toma vida própria, independente do criador. E só nos resta começar tudo de novo. Procuramos transformar vida e arte, arte em vida. Numa época em que parece pecado ter alguma pretensão. Não conseguimos fazer sem essa pretensão - a pretensão da chama, o fogo da criação! Não sobrevivemos da arte, mas não conseguimos viver sem ela”.

Novos verbos
”Somos experimentais, estamos sempre sujeitos a novos verbos, a mudar de estilo e estalo, mais subjetivos que objetivos, experimentando também diversas formas/formatos de apresentação. Quase um parto, sempre. E todo mundo ocupado, fazendo por doação, como nós que não sobrevivemos de música, mas não conseguimos viver sem ela. Aos 46 do segundo tempo, meu amigo, é porque continuo ainda muito a fim”.

Arquiteto da (des)construção
“Para mim todas essas linguagens estão interligadas. A arquitetura, a poesia, a música, o cinema, o video, o teatro, a performance... A construção no espaço, diálogos e respirações, jogos de palavras, de formas, de volumes, cores, preto & branco, luz e sombra, o movimento de câmara, o movimento da palavra, ritmo, modulação, planos e contraplanos, pontos e contrapontos, protagonistas e coadjuvantes, e coisas que ainda não têm nome, coisas inventadas, palavras inventadas, a palavra-imagem, o som do silêncio... e "sentir que o resumo é de cada um". Qual a meta? A metalinguagem, por exemplo. O que me interessa é a multilinguagem, a pluralidade, a experimentação, correr o risco. Agora vamos brincar com fogo, nos queimar de criação”.

A realidade do vazio
Meu primeiro projeto de arquitetura quando formado foi o projeto de uma aula da saudade. Minha turma me convidou para ser o orador e na aula da saudade eu disse: esse é o meu primeiro projeto de arquitetura - o projeto da aula da saudade! Assim sinto tudo, de uma forma mais ampla, acreditando no vazio féril de Beckett: "nada é mais real do que nada". No império do chão e no criançamento da palavra de Manoel de Barros. Na aventura e liberdade do olhar de Antonioni, na poética do espaço de Bachelard: "o sonho é mais forte do que a experiência".

Autorais em terra de covers
”Trabalhar a experimentação autoral numa cidade onde predomina músicas de mau gosto e onde bares ditam a coverização excessiva... Ainda assim, acho que temos, vou provoca-usar, a palavra: sucesso! Se fazemos um show para uma pessoa e ela curte e nós também, isso pode ser considerado um sucesso aos envolvidos. Não defendemos olas aos poucos, mas se muitos não vão aos shows, não podemos obrigar as pessoas, nem vamos ficar amargos com isso, não faz bem pra saúde”.

Novos projetos
“Nesse ano resolvemos dar um tempo dos palcos. Estamos dedicados ao trabalho que será registrado em CD e DVD (Prêmio Núbia Laffayet). E eu, particularmente, estou também me concentrando em organizar um livro de poesias para o próximo ano, fazendo um novo blog, e me envolvendo também com direção, roteiro e produção de vídeo”.

* Matéria publicada hoje no Diário de Natal (aqui, com uns adendos)
* Foto de Giovanni Sérgio

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