quinta-feira, 24 de junho de 2010

A saideira de “Lourinho”

Dono do tradicional Bar do Lourival morre decorrente de problemas cardíacos aos86 anos

A boemia natalense amanheceu de ressaca. Dessas de deixar o corpo encurvado feito berimbau. A salvação no caldo de mocotó do Bar do Lourival tem gosto amargo nesta quinta-feira cinzenta, véspera de mais um jogo do escrete canarinho. Amanhã, tudo vira futebol e o livro da história de Natal recebe mais um capítulo dedicado às tradições boêmias e costumes do chamado Plano Palumbo. O dono do bar mais antigo de Natal tomou sua última dose de vida na madrugada de ontem e deixou amigos e adeptos do verdadeiro buteco órfãos da última saideira com “Lourinho”.

Lúcio Lourival da Silva morreu aos 86 anos decorrentes de problemas cardíacos, no hospital da Hapvida (Antônio Prudente). Há uma semana foi levado à UTI quando sofreu pequenos infantes. O currículo de internações hospitalares de Lourival é recheado. Só de cirurgias foram seis safenas e duas mamárias. Era também diabético. A luta contra a morte foi uma constante nos últimos anos. O corpo foi velado durante a manhã e sepultado às 17h de ontem, no Cemitério Morada da Paz, em Emaús. Amigos e assíduos do velho bar estiveram presentes.

O bar já vinha administrado por Lourival Filho há alguns anos, quando o pai piorou a saúde e se afastou do buteco criado há 45 anos. À época, Lourival era contínuo do Banco do Povo. Trabalhou lá 35 anos até alugar o ponto onde hoje está situada a sede da Rádio 96, situada próximo à casa onde morava. Comprou depois a casa ao lado do ponto alugado - do famoso construtor Joaquim Vitor de Holanda, responsável pelos projetos do Atheneu, Colégio das Neves e outros -, encerrou o aluguel e montou o bar nos jardins da residência.

À frente, a sede do Diário de Natal, na Deodoro da Fonseca. E a avenida, então dos principais corredores de tráfego da cidade - recebia ali a sua universidade popular, o ponto de encontro da boemia natalense. Jornalistas como João Batista Machado, Jurandir Nóbrega, Ubirajara Macedo e outros logo tomaram o bar como segunda casa. “À época, o Diário promovida shows no auditório e de calouros na Rádio Poty. Tinha também o Cinema e o bar ficava em frente. Quando tínhamos dinheiro, se pagava, quando não, pendurávamos a conta”, lembra o jornalista Paulo Tarcísio Cavalcanti.

Paulo era dos jornalistas do Diário de Natal frequentadores do bar ainda embrião. Recorda ainda do “butequinho vizinho onde hoje é a 96” e só depois ampliado com a compra da casa ao lado. “Ele sempre foi muito atencioso e amigo com quem chegava. Mas mantinha distância e sabia deixar os frequentadores à vontade”. “Seo”Lourival nunca soube responder quando o bar foi começou. Arriscava um “maio de 66” incerto, desconfiado. Certeza mesmo, a lembrança da avenida Deodoro ainda de barro e à espera do progresso.

A arte do encontro
Se diariamente o carneiro na nata, o guizado ou a famosa paçoca encontram bocas anônimas a saborear papos de buteco (buteco com “u”, o verdadeiro, e sem pedir licença poética), o bar também foi memória. Por lá passaram o rei Pelé (a foto estampada no mural do bar), Luiz Gonzaga, e a música e presença boêmia de Sílvio Caldas e Altemar Dutra. Afora as estrelas locais e nacionais que se apresentavam na Rádio Poty e jogavam o “segundo tempo” no Bar de Lourival. “Eles vinham se apresentar, ficavam conversando e acabavam se aproximando dos clientes”, contou “seo” Lourival ao Diário, em 5 de março de 1996, quando comemorou 30 anos do bar.

Já naquela época, Lourival disse estar “cansado e sem forças para tocar o bar”. A morte da mulher Liege Silva há poucos anos agravou o estado de saúde de um dos patriarcas da vida boêmia da cidade, que ensinou a muitos onde mora a verdadeira vida. Como disse o poetinha Vinícius, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. E Lourival convidou, sem formalidades, anônimos e sinônimos ao roteiro lírico e sentimental do bar - onde brotam causos e causas, teorias de “butiquin” que costumam salvar a vida do perigo da realidade crua, porque butecos são também palcos da alegria ilusória, convidativa e necessária.

* Matéria publicada hoje no Diário de Natal

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