terça-feira, 22 de junho de 2010

África para além do futebol


Mostra gratuita de cinema exibe 37 filmes do cineasta-antropólogo Jean Rouch no auditório do Sebrae

Antes de Glauber Rocha empunhar uma câmera na mão a partir de uma ideia na cabeça para criar o Cinema Novo, o francês Jean Rouch já adotava o formato dos equipamentos leves e equipe de produção cinematográfica reduzida para produzir seus filmes. Foram mais de 100 ao longo do século 20. Todos amparados na antropologia, sobretudo da cultura dos povos africanos. Jean Rouch pintou uma África real, longe das belezas ficcionistas exibidas nas últimas semanas em razão da Copa do Mundo de futebol promovida no continente de tantas mazelas, cores e contrastes.

Desde ontem o auditório do Sebrae é palco para exibição de 37 filmes de Jean Rouch – o mais importante cineasta de filmes etnográficos. São longas e curtas-metragens, a maioria inédita no Brasil. Ao fim de cada filme, o curador da mostra, o professor de cinema e filósofo Mateus Araújo Silva, debate com o público a obra do documentarista francês, seu legado, sua relação com a antropologia e com a linguagem cinematográfica. A entrada é gratuita e a programação é continuada, a partir das 15h até às 20h.

Mateus delimitou um recorte conciso, mas não menos representativo da obra e do itinerário de Jean Rouch (1917-2004) nos aspectos temáticos, geográficos e nos valores estéticos. “Se muitos sabiam que Rouch é um cineasta fundamental e um africanista importante, pouquíssimos haviam tido um contato direto e efetivo com o conjunto de sua obra. Sua vasta filmografia, que aguardava uma retrospectiva ampla, agora é devidamente resgatada”, afirmou o curador da Mostra.

A professora de cinema e pós-colonialismo do Núcleo de Antropologia Visual da UFRN, Lisabete Coradini diz que o legado do trabalho antropológico de Rouch encontrou no cinema uma forma de interagir com o sujeito da obra. “O resultado das pesquisas antropológicas são publicações em livro ou relatórios entregues ao CNPQ, inacessíveis aos pesquisados, muitas vezes analfabetos. Rouch fez de seus documentários formas de interação com os povos africanos os quais pesquisou”.

Jean Rouch elegeu como objeto privilegiado do seu trabalho alguns países da África Ocidental (sobretudo Níger e Mali, mas também Costa do Marfim e Gana), dos quais deixou um acervo de imagens e sons sem paralelo. Também filmou muito na França e noutros países, revelando sempre, por onde tenha andado, curiosidade pelas diversas culturas e vontade de compreendê-las. Seus filmes influenciaram a geração de cineastas da Nouvelle Vague.

Nos anos 60, ele fez parte de uma vertente do documentário que ficou conhecida como “cinema verdade”. A essência desta escola questionava qual a verdade produzida no cinema, na eterna dicotomia entre a pesquisa histórica do documentário e a realidade ficcional. “Ele conviveu com os sujeitos pesquisados. Discutia e aperfeiçoava o filme junto à comunidade antes de concluí-la. Rouch dizia que, primeiro, produzia filmes para os africanos; segundo, para seus amigos; por último, para a Academia. Ele rejeitava a grande indústria cinematográfica”, disse Lisabete Coradini.

E foi a partir da forma simples de produção cinematográfica e a amizade com o cineasta Glauber Rocha, nos anos 60, a influência direta de Rouch ao Cinema Novo. Para o curador Mateus, Rouch inovou técnica, ética e esteticamente o cinema. Procurou tratar seus personagens como sujeitos e não apenas objetos do discurso fílmico. Na sua visão, o desejo de investigação do filme etnográfico oferece um ponto de convergência entre a subjetividade do criador e a objetividade do pesquisador – ou, de outro modo, entre arte e ciência.

“Em oposição a mestres da antropologia como Claude Lévi-Strauss (para quem o registro cinematográfico era ‘como um caderno de notas, que não deveria ser publicado’), Rouch entendia o documentário etnográfico como uma forma de estabelecer um diálogo com o sujeito do seu estudo, em vez de apenas descrevê-lo. Esta mudança de paradigma seria, para Rouch, uma maneira de contribuir para que a antropologia deixasse de ser ‘a filha mais velha do colonialismo’”, Mateus.

A Associação Balafon (responsável pelo projeto), conta com o patrocínio da Secretaria do Audiovisual e o Ministério da Cultura. A mostra foi estendida a mais seis capitais brasileiras, dentre elas Natal. A versão potiguar da mostra conta com a organização local do Navis (Núcleo de Antropologia Visual da UFRN), da Zoon e do Cineclube Natal, e com apoio do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), do Departamento de Antropologia (DAN) e do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN (CCLHA).

Mostra Jean Rouch em Natal
Quando: até sábado
Onde: Auditório do Sebrae (Av. Lima e Silva, 76, Lagoa Nova - em frente ao Estádio Machadão)
Hora: sessões a partir de 15h, com cópias em DVD legendadas
Entrada franca

PROGRAMAÇÃO DE HOJE
15h
Programa 2: Incursões noutros países da África negra: Gana e Burkina Faso (1953-57) 100’
- Mammy Water (Gana, 1953-1956) 18’
- Les maitres fous (Gana, 1955) 28’
- Baby Gana (Gana, 1957) 26’
- Moro Naba (Burkina Faso, 1957) 28’

17h
Programa 3: Primeiro ciclo de improvisações etnoficcionais I: migrações 92’
- Jaguar (Níger & Gana, 1954-1967) 92’

19h
Programa 4: Primeiro ciclo de improvisações etnoficcionais II: labirintos da identidade 73’
- Moi, un noir (Costa do Marfim, 1958-9) 73’

* Matéria publicada nesta terça-feira no Diário de Natal

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