Por Emídia Felipe
Conto premiado com o 3º lugar no concurso do BNB
Meia-noite
Sempre estivemos juntos. Cidade pequena, todos se conhecem, conhecem as vidas e julgam-nas como se assistissem a uma novela. E parece estar no script também a vida futura, onde os personagens mais antigos escrevem os capítulos da trajetória dos mais moços. Neste aspecto, porém, posso dizer que tive sorte, pois quem escolheram para mim foi também quem escolhi; e a dádiva maior foi ter retribuída a escolha por parte de Cecília.
Cecília... Moça inteligente e arisca. Teria costumes normais de filha de família respeitada não fosse sua vontade de ver mais além do Rio Talismã, que marcava o fim da cidade. De tempos em tempos, ouvia-se que tinha montado a cavalo e fugido, mas não tardava a voltar. Esses comentários baseavam-se nos boatos que, dentro de casa, Cecília afrontava o pai dizendo que qualquer dia ia embora, que queria conhecer lugares novos e aprender mais; o pai calava-lhe com a vida estável, boa posição e tradição que a família tinha ali. Não sei se isso era verdade, só sei que me apaixonei. Ela não me desgostou, mas dizia que eu era quieto demais diante das pessoas. Ela foi sincera.
Fomos vivendo assim, namorando aos olhos de todos, à sombra dos planos de nossos pais de casar-nos, formarmos família depois de mudar-nos pra casa da Rua do Mandacaru... Eu seguia admirando cada vez mais a personalidade e a beleza de Cecília, ela me falando e mostrando a primeira, tentando me convencer que sair de Salto Largo e conhecer o mundo era o melhor plano de vida. Fora isso, os saltolarguenses seguiam as rotinas mesmas; varrendo calçadas, batendo ponto na repartição e gritando alto na feira e na praça do centro. As crianças depois da escola, umas fugidas do banho, outras depois do almoço, iam para a margem do Talismã...
Vida pacata que eu tenho saudades da minha querência... Volto lá qualquer dia desses...
Mas nada de diferente poderia acontecer ali além do que aconteceu. Nada além do que começou com aquelas fofocas de comadres e gabação dos moleques, jogando o tempo fora na tentativa de a vida passar mais ligeiro. Eles falavam de um certo bicho que os homens tinham visto na mata, perto dos Guilêro (Grileiros), junto da nascente do Rio Talismã. Fosse bicho pequeno ou bonito, não falariam daquele jeito, com a mão na boca e um entortado de pescoço com cara de desconfiança. Diziam que além de forte era feio, como o demônio em dias de raiva. Tinha gente que tinha andado pela Amazônia e falava que era como um Mapinguari, mas que andava de noite. Não que eu ficasse debruçado na janela ouvindo as novidades dos dias, mas as conversas foram se alastrando tanto, enchendo-se de mais detalhes que acabaram sendo o assunto de um dos jantares em casa de Cecília.
- Ouviram falar da besta?
- O quê?
- Besta, Cecília.
- Ora, quem não ouviu? – interveio dona Neguinha, cozinheira de mão cheia que adorava esses informes diários – Atacou um homem lá pras bandas dos Guilêro, depois matou duas vaca pros lado dos Pedroza.
- Ah! Não acredito que vocês dão ouvidos a essas histórias! – indignou-se Cecília – Será que nunca vão aprender o quanto esse povo gosta de fofoca?
Eu, na verdade, não me importava com todas aquelas histórias, pois além de admirar Cecília, tinha meus estudos para cuidar. E não eram poucos para quem almejava ser o novo médico da cidade. Mas não pude ignorar o tal bicho quando a minha bela o inseriu na nossa conversa do fim da tarde.
- Você já ouviu falar do Abaité?
- Ouço as pessoas falando por aí. O que tem ele?
- Ora, dizem que está matando bichos e atacando gente.
- Coisa da cabeça desse povo, Cecília. Me admira você, tão inteligente, não saber que isso não passa de mais uma peça de folclore.
- Ora, tudo é possível. Principalmente por aqui.
Consegui calar-lhe com um carinho em seu rosto e um beijo.
Os dias passaram e vez por outra chegava em casa de Cecília à sua procura e Zé Mago, criado da casa, me avisava que “a dona moça tinha saído de cavalo”. Desapontado, seguia para minha casa. E demorei alguns dias para perguntar-lhe o porquê dos passeios. Acho que estava prevendo que a resposta não me agradaria, tampouco me convenceria.
- Andei por aí, para ver se via o tal bicho que vem assombrando as pessoas.
- Ora Cecília, você não é o delegado, nem fazendeira, para se meter por estes matos à procura de algo que você nem sabe se existe!
- Está me repreendendo?
Seu semblante fechado não me permitiu dizer a verdade.
- Não... eu... apenas estou preocupado com a sua segurança.
- Se está tão certo que o Abaité não existe, não deveria estar tão preocupado.
Ela saiu sem me dizer aonde ia ou quando nos veríamos novamente. No dia seguinte, nos encontramos, mas preferi não tocar no assunto e fiquei feliz por encontrá-la em casa. Mas isso tornou-se mais raro.
As línguas inquietas da cidade começavam a especular sobre os passeios noturnos de minha rebelde Cecília. E meu coração apaixonado não suportava mais suas ausências, preenchendo estas lacunas com desconfiança de que havia alguma coisa errada. Certa noite, disse-lhe que não gostava quando podia vê-la e que sua busca pela tal criatura havia se tornado uma obsessão.
- Eu saio à noite porque é quando ele sai para caçar. Ele é grande, peludo como um cachorro e já estou quase descobrindo seu esconderijo.
- Seus pais já começam a reclamar e o povo da cidade a falar mal de você. De nós dois.
- Meu pai deve, mas eu nada devo a essa cidade. Vou achar aquele animal.
- Mas para quê? E o que vai fazer quando achar? Será que é mesmo este bicho que você está procurando? - Disse eu já extravasando meus ciúmes e em alguns tons acima do que eu costumava falar com ela.
- O que está dizendo? Nunca menti para você! Aliás, é por isso que nunca disse que te amava! E agora vem me acusar.
Acabei por ouvir uma verdade que conhecia, mas não queria escutar com suas palavras, que engoli cada letra com um incômodo atrito. E a vi de costas, batendo o portão e gritando de longe que sumisse dali. Não arredei o pé e poucos minutos depois ouvi o galopar do cavalo com um cavaleiro de grandes madeixas em parte escondidas com um chapéu. Não sabia o que fazer: se ia atrás dela ou se a obedecia e ia para minha casa, amargar a noite dura que começava. Escolhi nenhum dos dois. Ao pé do muro da sua casa, resolvi esperar e esperar e esperar... Como as horas passavam sem que o cavalo de Cecília retornasse com sua linda amazona, bati à porta de sua casa.
- Seu Amâncio!
- Quem é?
- Carlos!
- Entre, rapaz!
Ele me olhou desconfiado, mas o tempo que usou para respirar me deu espaço para perguntar:
- O senhor pode me emprestar um cavalo?
- Cadê Cecília? Não tá com você?
- É por isso mesmo que queria um cavalo. Ela saiu de novo atrás daquele bicho; já faz duas horas e ainda não voltou.
- Não acredito! Aquela menina não tem juízo! Como é rebelde! Vá logo, Carlos! E traga ela de volta!
- Sim, senhor!
Tentei seguir a trilha que Zé Mago me disse que minha bela seguia quando saía à noite, mas logo o mato ficou denso e só o barulho de galhos e corujas – eu acho que eram corujas – era possível de se ouvir. Sabia que já estava bem distante da cidade, mas não poderia dizer onde exatamente eu havia parado. Foi quando o grito de Cecília voltou meu olhar para o pé do monte Costa de Pedra, onde a lua cheia deixava uma enorme e assustadora sombra. Temi, confesso, mas fiz o cavalo correr o mais rápido que podia e enfim cheguei próximo às pedras, mas já não ouvia nada. De súbito, um forte golpe me foi dado nas costas e eu caí do cavalo. Ao levantar a cabeça, vi apenas o vulto que corria para baixo de uma grande pedra que deixava uma gruta.
- Cecília! - Gritei como se aquilo pudesse salvá-la.
Mas não ouvia nada.
Me aproximei da gruta e novamente fui golpeado, desta vez na cabeça. Caí desmaiado e ao abrir os olhos, ainda tonto, tive a impressão de que Cecília me acariciava a cabeça e pedia para que eu a esquecesse. Mas acordei apenas pela manhã, com os gritos de alguns homens que chamavam por mim e por ela.
- Estou aqui! Disse ainda com a cabeça doendo e com as costas e o pescoço ardendo, com marca de garras que deixaram o meu sangue escorrer.
Eles correram em minha direção e a primeira coisa que me perguntaram foi onde estava Cecília.
- Eu não sei – Respondi, chorando - Não sei.
Segurei a cabeça entre as mãos e deixei transparecer minha raiva e minha tristeza. E minha impotência.
Antes de sairmos de lá, um menino encontrou as roupas de Cecília e uma pele que parecia de lobo em uma saída da gruta, que dava para o Bosque das Raposas. Esperamos. Procuramos. Esperamos. E, por fim, tivemos que chorar a morte de Cecília com seus parentes, mas não houve enterro porque não havia um corpo. Só que o que mais me enraivecia depois era ouvir os boatos de que um casal de feras estava assustando as cidades do norte e que em sua trilha havia passado por várias pequenas perto da nossa.
Salto Largo só me trazia lembranças tristes e, mesmo a contragosto dos meus pais, resolvi terminar meus estudos na capital. Até hoje não se sabe o que aconteceu com Cecília, ou com sua vontade de conquistar novas terras, ou com seus lindos olhos amendoados, ou com sua boca doce e macia. Prefiro pensar que ela morreu e que a criatura, para nos penalizar com a dúvida, enterrou seus ossos. O que sei é que aquela meia-noite em Salto Largo jamais sairá do meu coração.
Do blogueiro: Já que me pediste, Emídia, minha crítica breve e construtiva, de quem pouco lê contos e admira mais as crônicas, romances e até poesias. Se esse conto fosse filmado, premiaria a produção e criticaria o roteiro. Ou seja: achei bem arquitetado, escrito, descrito. Mas achei a estorinha muito básica, pouco original. Um ou outro diálogo alongado e um início muito bom. As primeiras linhas são dignas de Tostói (rs). As passagens descritivas da cidade interiorana são enxutas e multiplicam cenários, sensações - talvez seja o melhor do conto. E para fechar, uma opinião particular e amparado nos melhores contos que li: gosto mais dos finais com reticências, digamos. Aqueles que deixam um mistério, uma provocação no ar. Parabéns, boy Emídia! Tenho dificuldade de escrever esse troço. Admiro quem consegue. Valeu!
[image: Onde vai a vírgula no MAS?]
Você já parou para pensar onde a vírgula deve ser colocada quando se
utiliza a conjunção "mas"? Neste artigo, vamos e...
Há 3 horas
Eita, parabéns a Emidia pela conquista. Tudo que se ganha com este ofício de escrever ficção, vale a pena celebrar. Abraço, amigo, o blog continua "supimpa" como diriam os personagens de Nelson Rodrigues.
ResponderExcluirObrigada, gente! Acho que escrever, além de vocação, também requer treino: ler e escrever, ler e escrever, ler e escrever, ad infinitum. É o que quero fazer. Também achei o mesmo, Serguinho hehehehe. Também achei meio pueril, mas o é, de fato, como eu sou na escrita de ficção. Escrevi há uns quatro ou cinco anos, inspirada na música "Mistérios da meia-noite", de Zé Ramalho. Gostei muito da ideia - gosto da mistura de histórias verossímeis com elementos fantásticos - e achei que poderia desenvolvê-la. Fiquei muito feliz com o prêmio, com a grana, mas principalmente com o estímulo de eu continuar aprendendo a escrever para escrever mais e melhor. Com a ajuda de vocês isso vai ficar mais fácil! Muito obrigada! Bjs
ResponderExcluirMuito orgulhosa por Emídia!!!
ResponderExcluirParabéns, louca!