segunda-feira, 5 de julho de 2010

Memória viva do cordel


Cordelista mais velho do Brasil ainda se diverte “no bico da caneta” e escreve versos diariamente

Todos os dias Zé Saldanha visita seu escritório, o Recanto do Poeta. É assim há décadas. Sua companhia é a caneta, as lembranças dos tempos de menino e até de Lampião sacando moedas de ouro do bisaco e jogando à criançada. O passatempo deste cordelista de 92 anos é escrever versos. É assim todo dia. A visita esporádica de estudantes completa as alegrias da tarde. José Saldanha de Menezes Sobrinho nasceu em 23 de fevereiro de 1918. Provavelmente seja o cordelista mais velho do Brasil ainda em atividade. Distante 75 anos de seu primeiro cordel, ainda conserva voz altiva de quem declamava poesia nas feiras interioranas, nos tempos em que “o cordelista era muito mais querido do que Roberto Carlos é hoje em dia”.

A reportagem encontrou o Recanto do Poeta de portas fechadas. O “estranhamento” tem motivo: o cordelista estava gripado. Mas em casa mesmo, ao lado de seu “escritório”, já escreveu cordel sobre a gripe suína. É costume de Zé Saldanha a escrita diária. “Em cada fio de cabelo tem um cordel pendurado”, como afirma em um dos seus versos. E é a poesia popular que parece sustentar o corpo magro e ainda saudável do poeta. O reconhecimento dos visitantes ou as homenagens pouco freqüentes lhe rejuvenescem. Zé Saldanha ainda deseja ver publicados trabalhos recentes, a exemplo dos três volumes já escritos sobre a história do cangaço em uma coletânea, e também um livro sobre a trajetória do cangaceiro Corisco e sua mulher Dada.

“Entra dia, sai dia e finda dia,/ Meu passa tempo é fazer verso/ De tudo que tem no universo;/ Eu vou colhendo e traduzo em poesia:/ Meu prazer, meu eu, minha alegria!/ A poesia é um riso, uma festa, uma retreta;/ Escrevendo o que tem nosso Planeta/ Traduzindo em verso veterano/ Entra ano, sai ano e finda ano/ Me divertindo no bico da caneta!”, escreveu. E diz, como alma de menino: “Quero continuar vivendo e escrevendo minhas poesias, publicar os trabalhos que tenho produzido e republicar outros. Quero viver como estou. Primeiramente com saúde, abraçando minha família e meus amigos, palestrando e apresentando meus cordeis, para quem deseje e goste de ouvir”.

O cordelista nasceu na fazenda Piató, em Santana do Matos. Naquele início de século os tempos eram de coronelismo, beatos, rendeiras e cangaceiros. Nos sertões místicos e quentes do Nordeste, viveu entre cantadores e cordéis que retratavam não apenas a vida dura do sertanejo, mas também os horizontes de beleza e brabeza de homens do Sertão. “Minha maior alegria ainda é quando vou ao interior e encontro parentes e amigos, vejo a chuva e a fartura! Minha família é tudo de bom. E para completar a minha alegria, é poder recitar para estudantes que me procuram, fico feliz quando vou aos colégios ou universidades apresentar a cultura popular”.

Naquele início de século as opções para os não-descendentes de famílias tradicionais eram poucas: “Ou era cordelista, vaqueiro, amansador de potro, cantador de viola, topador de touro, matador de onça ou cangaceiro. Trabalhei no pesado. Papai me ensinou de tudo: quebrei pedra de barreira, arranquei toco, fiz cerca de pedra, fui bom cavador de terra pra vazante, apanhador de algodão, trabalhei na enxada, fui limpador de mato e também corri muito a cavalo. Só não fui cangaceiro”, disse o cordelista ao repórter quando estava sem gripe e no seu Recanto do Poeta – quase um anexo à sua residência, em Candelária. Por ali, Zé Saldanha caminha todas as manhãs e tardes e volta ao Recanto à espera dos estudantes ou quem queira lhe ouvir.

Encontro com lampião
Aos oito anos de idade, quando de viagem ao município paraibano de Souza, o pai do cordelista, Francisco Saldanha, soube da chegada do bando de Lampião à cidade. “Meu pai quis arredar o pé. Ele dizia: ‘Quando tem polícia e cangaceiro juntos o rebuliço é grande. E não deu outra”. Já estava de malas prontas para subir no cavalo quando Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aproximou-se. “Vinha cercado com quatro homens do lado esquerdo, outros quatro do lado direito e outros mais na frente e atrás. Ele vinha no meio. Colocava a mão num bisaco azul, enchia de moeda e jogava pros meninos da rua. Morria de achar graça com eles brigando pelo dinheiro. Passou por mim, olhou, mas não disse nada. Quando chegou a Catingueira foi pipoco de tiro e ele tomou conta de Souza. Fez o que quis na cidade”, lembra.

Saudade do sertão
De décadas como industrial de sapatos no Seridó, até repórter cordelista,, poeta sente saudades do sertão. Até já escreveu sobre a cidade grande – “lugar que matuto não se acostuma”. Depois de “engrandecer” as belezas e qualidades da capital, Zé Saldanha emaranha-se pelas matas sertanejas, “porque a vida da cidade é muito diferente da vida do interiorano, do camponês, do ruralista. E digo: nunca gozou a vida quem não foi do sertão; quem nunca sentiu a terra cheirosa depois da chuva, nem ouviu o grito da siriema, nem o touro urrando dentro da mata; não foi feliz quem não ouviu o miado da onça, nem viu a cascavel assanhada no pé da serra; quem nunca ouviu o canto doído do acauã. Tenho até pena de quem nunca sentiu o ventinho maneiroso quando chega a noite, vindo lá dos matagais, nem sentiu aquela calma tão medonha que só o sertão tem”.

* Matéria publicada domingo no Diário de Natal
- crédito da foto: Andressa Mirella

Um comentário:

  1. Maravilhosa esta reportagem, Sérgio, eu sou filha deste poeta, e ele é realmente um exemplo de determinação, todos os dias vou a casa dele, e a cada dia ele me surpreende, com os planos, com os objetivos de vida...simplesmente, graças a Deus, ele continua produzindo suas poesias, e sempre com planos de publicar...O que mais o deixa feliz é quando alguém vai ao seu escritório e fica a ouvi-lo, recitar os seus versos....

    Obrigado Senhor!

    Reneide Saldanha

    ResponderExcluir