A definição de Natal pela quadrinha quase secular “em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal” está passível de mudança neste século 21. O que se vê nas cenas cotidianas é a proliferação inusitada de grupos de samba. Em cada esquina um boêmio, em cada bar um cavaquinho malandro e novos rostos na música local. Em terra nordestina afeita ao forró e ao axé, bares natalenses têm dado preferência ao ritmo originado nos morros cariocas – a fórmula ideal de música popular qualificada para públicos variados. Moda? Talvez. Mas essa história teve um começo. E já se vão muitas décadas...
Em fins da década de 70, os bares da Praia do Meio e dos Artistas abriam espaço à música local. Muitos expoentes da MPB potiguar surgiram ali: Pedrinho Mendes, Sueldo Soares, Cleudo Freire, Valéria Oliveira... E no coração da Praia do Meio, nos redores da Praça do Pescador, o sambão do grupo João de Orestes lotava o Bar Sarava, do empresário Dinarte Júnior. Os mais antigos ainda lembram saudosos da época. Foi o primeiro bar em Natal com programação fixa de samba.
Antes de João de Orestes, mestre Lucarino (um dos dois maiores nomes da história do samba no Rio Grande do Norte) acendia um movimento boêmio, mais voltado à seresta e sem “residência fixa”. E se vale a memória, o potiguar precursor da Bossa Nova, Hianto de Almeida, mostra que Natal também tem raízes sambistas. Sua história foi marcada pelo samba e o samba-canção, em parcerias geniais com K-Ximbinho, até trilhar os caminhos bossanovistas a partir dos anos 50.
Após período de ostracismo, embora as rodas de samba tenham se mantido em reuniões informais de amigos, sobretudo nas Rocas, nenhum bar ou grupo mereceu referência nos anos 80 – época ainda gloriosa às agremiações carnavalescas. Residiam neste universo de galpões, figurinos e desfiles os grandes sambistas do momento. Quando a década de 90 apareceu na esquina, o Brasil preparava os ouvidos para a explosão do pagode e de grupos como Raça Negra e Só Pra Contrariar.
O pagode meloso fugidio das tradições do samba incentivou a proliferação de grupos do gênero em Natal. Não demoraria e a primeira casa de show, até hoje lembrada como a maior referência para o samba e o pagode, abria as portas em meados daquela década. O Pagode Madureira reunia os melhores grupos da cidade. Era uma espécie de Cacique de Ramos natalense, salvo proporções. O amplo espaço lotado de fãs de samba e pagode, sobretudo aos domingos, apresentava duas ou três bandas locais na programação e o Pagode Madureira na abertura e encerramento.
Grupos como o Divina Chama despontavam no cenário e lotava a Casa. O filão – empurrado pela onda de grupos nacionais – incentivou boates a também adotarem o estilo. A Hooters foi a primeira: criou ambientação voltada exclusivamente ao estilo e pouco depois abriu um espaço aos sábados para grupos de pagode. Na Zona Sul, casas de show pipocaram à proporção ao surgimento de novos grupos. O Vila Folia incluía atrações de pagode ao forró, na programação e o natalense assumia o som do pandeiro.
O Pagode Madureira fechou quando o pagode cedia espaço às bundas do axé music ou aos agudos das novas duplas sertanejas puxadas por Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo e Zezé de Camargo e Luciano. Os resquícios de samba na cidade, puxados pela febre do pagode, morreu junto. Pelo menos para os adeptos da moda. Nos recantos de origem do gênero na cidade, Cartola, Roberto Ribeiro, Nelson Sargento e outros bambas permaneceram vivos.
De Nazaré à Catita
As cinzas do cavaquinho, espalhadas pela cidade durante quase uma década, se juntaram há cerca de quatro anos. Amigos amantes do samba começaram a se juntar de forma informal no Bar de Nazaré e o Chorinho era tema principal. Camilo Lemos, Carlança, Ronaldo Freire e Marcelo Tinoco receberam o incentivo do médico e produtor cultural Zizinho. E o Bar de Fátima, ali ao lado – por trás da Assembleia Legislativa, adjacência do Beco da Lama – escutava os primeiros acordes do que viria a ser mania em Natal.
O Chorinho no Bar de Fátima reunia produtores, artistas e amantes da boa música. O Centro Histórico recebia um prestígio há muito esquecido. Mas sem infraestrutura de banheiro, de petiscos ou mesmo reconhecimento pela clientela atraída, o grupo preferiu abandonar o Bar e desceu à Ribeira após um ano de instrumental no Centro. Nascia ali, na erma Rua Câmara Cascudo, o Buraco da Catita – talvez o maior responsável pela explosão de grupos de chorinho e samba pela cidade.
Zizinho, Camilo Lemos e Cia fizeram da “Catita” um espaço cultural voltado ao chorinho e ao samba. Sextas-feiras apinhadas de gente no pequeno espaço disseminaram o gênero pela cidade. No Beco da Lama, uma turma de jovens talentos que acompanhavam os “chorosos” nos ensaios no Bar de Fátima, ocuparam o espaço com samba de raiz e reativaram o movimento no local. Eram os meninos do grupo Arquivo Vivo.
Na Ribeira já movimentada, uma dissidência do grupo de instrumentistas da Catita também subiu a ladeira e, novamente sob a batuta de Zizinho, fundaram o projeto Nós do Beco, com o grupo Roda de Bambas – uma seleção de alguns dos mais famosos músicos e compositores de samba da cidade: Debinha, Chumbinho (filho de K-Ximbinho), Damiana, Cabanhas, Pacheco, mestre Silvano e outros da velha guarda das agremiações carnavalescas de Natal.
Do boteco aos bares
O Buraco da Catita hoje é Espaço Cultural Buraco da Catita, com reurbanização bancada pela prefeitura municipal e programação também voltada a diversas manifestações artísticas. O projeto Nós do Beco preenche a Rua Vigário Bartolomeu.de mesas e fãs de samba, sempre às primeiras sextas-feiras do mês. E o grupo Arquivo Vivo migrou ao Bar de Nazaré e também lota o espaço e a Rua Cel. Cascudo nas noites de quinta, a partir das 19h.
O sucesso do quadro do samba e do chorinho desenhado nos botecos entre a Ribeira e o Beco da Lama se espalhou pela cidade, a exemplo da abertura da cidade ao pagode a partir do Pagode Madureira, na Zona Norte. Hoje, pubs como o Taverna cedem espaço ao samba. O grupo Rodas de Bamba é atração certa às terças-feiras por lá. Alguns dos bares e petiscarias mais badalados – Seis em Ponto, Tom Maior... – ou outros mais novos, a exemplo do Lá na Carioca, contratam grupos de samba para reunirem clientela ao som de boa música.
Arquivo Vivo
O Arquivo Vivo é exemplo da ascensão e prestígio recebido pelos novos grupos de samba genuíno da cidade. A maioria dos integrantes cresceu nas rodas de samba das Rocas. Dos ensaios no Bar de Nazaré abriram shows de alguns dos maiores compositores de samba do Brasil: Sombrinha e Almir Guineto, no Sancho Pub, e Neguinho da Beija Flor, no Teatro Alberto Maranhão.
Foi também da repercussão dos ensaios no Bar de Nazaré que chegaram ao Tom Maior sempre aos sábados, a shows no Seis em Ponto e, mais recentemente, às terças-feiras do projeto Praia Shopping Musical. “Rapaz quando ouvi esses meninos eu fiquei doido. São muito bons. Estão lá todas as terças no ‘Praia’, agora”, disse o produtor musical do projeto, Zé Dias.
O Arquivo Vivo já tem projeto de gravação de CD. Sombrinha e Almir Guineto já enviaram músicas autorais, com voz e violão, para compor o álbum. “Será coisa de primeira linha. Khrystal e Ivando Monte também participarão. Jubileu Filho irá produzir. Queremos fazer tudo sem pressa para ser dos grandes CDs lançados em 2011 na cidade”, comemora Marquinhos.
“Abrimos o espaço do Bar para divulgar o trabalho do grupo e desde quando chegaram o movimento aumentou. Não cobramos couvert artístico ou 10%. A música atrai pessoas ao Centro, ainda carente de atrações culturais. E com o movimento maior, melhor segurança, iluminação”, comenta o dono do Bar de Nazaré, Paulo Eduardo, o “Paulinho”.
A história do movimento cultural promovido no Beco da Lama já provocou a primeira notícia do titular da Semsur, Salatiel de Souza, de urbanização da área, tal como foi feito há poucos meses no Buraco da Catita. “Quando se fala em revitalização só se lembra da Ribeira. E o Centro, o Beco da Lama, permanece esquecido pela história, mesmo situado por trás de um órgão tão importante como a Assembleia Legislativa”, reclama Paulinho.
* Matéria publicada no Diário de Natal já faz bem um mês. Mas as quintas-feiras são dedicadas ao samba, com Arquivo Vivo no Bar de Nazaré (Beco da Lama). E hoje, excepcionalmente, tem o grupo Linha de Passe no Bar do Coelho (Cidade Alta).
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