No Diário de Natalmatéria de hoje
Explicar o inclassificável. É a pretensão dessa matéria. Um desafio tal qual o vivido pelos poetas Carlos Gurgel, Carito, Renata Mar, Civone Medeiros e Pedro Quilles. Em dois meses de ensaio, eles tiraram a poesia do esconderijo, mastigaram o mel das palavras e hoje ficarão embriagados no Buraco da Catita. Às 20h é a hora do primeiro gole de poesia pura, sem tiragosto. A plateia é convidada à mesa. Não há boemia, nem requinte. A liberdade é vigiada. Não é recital, sarau ou coral. Nem performance. Já foi dito: é desafio; o desafio da palavra crua.
Toque de Colher Poemas é o nome da apresentação. Apresentação? Bom, a poesia será jogada e não apresentada sob formalidades ao estilo antigo, para reis e nobres. A espontaneidade também é contida. "Nem Aliança Francesa, nem Beco da Lama (com todo o respeito aos dois)", metaforiza Carito. Respeito houve à boa poesia - é a essência do "Toque...". Walt Whitman explica melhor: "Nada maior ou menor que um toque". Então, os cinco poetas viajam durante 50 minutos em universos poéticos sem limites, mas guiados pela bússola de um toque, sem mais e nem menos.
A bússola-mestra é a direção e produção de Carlos Gurgel. Carito é joguete de palavras encaixadas; é palavra crua, nua; é o "princípio que justifica os seios". Renata Mar é doçura; timidez desnuda, desabrochada; é prosa-poesia; anjo travesso. Civone Medeiros se veste de teatro poético; come poesia condensada e espirra palavra doce via performance. Pedro Quilles joga pedra na sua testa até espirrar sangue de letrinhas. E ali pelo cantinho, o jornalista Petit das Virgens toca um fole de poucos baixos, bem baixo. Ou o artista plástico Flávio Freitas "trumpeteia" a passagem ao próximo ato.
O desafio é repartido em três momentos. Na primeira, o início: "Por uma poesia que pulse!". E cada poeta vive seu mundo, sua poesia inclassificável, com o suporte gestual e a companhia estranha dos demais em performances sonoras indecifráveis e sutis. Há um trabalho corporal performático. Mas a vontade"é trabalhar a poesia de cada um: ler, soletrar, sentir e criar", disse Gurgel. É uma espécie de recitais-solo amparado em "sons minimalistas, onomatopéicos, causando estranheza que trabalha com sutilezas às vezes quase cômicas", descreve Carito. Petit das Virgens toca o fole e vem o segundo ato...
A improvisação marca o momento seguinte. Os cinco poetas se sentam à mesa confessional. Demonstram instantes informais, íntimos. Parece reunião de amigos para leituras aleatórias de poemas. "É o momento em que mais gostamos. Sempre lemos poesias diferentes nos ensaios e no espetáculo também será assim". Carito conta que detalhes foram construídos durante os dois meses de ensaios (duas vezes por semana). Há apenas a marcação de um poema. "É bom porque deixamos o espetáculo vivo", ressalta. E Flávio Freitas toca um som triste no trompete. É o terceiro ato...
Os instantes finais são os mais intensos. Há algo psicodélico; de revolta e desejo de quebra de paradigmas. É quando a poesia presta serviço à revolução dos sentimentos. A cinco bocas, o desejo de pulsar e mudar. "É o momento-show dos poetas que fazem uma espécie de jograu psicodélico. É uma textura mais complexa. Um trabalho de poesias juntas, em cada estrofe. Funciona como colcha de retalhos; um carrossel verbal e poético onde nossas poesias se fundem", diz Carito. E a plateia atônita pode ainda colher surpresas, provocações irônicas ao ouvido - poesia lacrada e depois revelada.
Palavra crua"Gurgel queria algo que fosse diferente do que cada um fazia normalmente em suas atividades artísticas. Eu, claro, me sentiria mais confortável com toda a parafernália eletrônica e recursos audiovisuais que costumo utilizar no trabalho d'Os Poetas Elétricos. Mas não. Palavra crua. Com Civone do mesmo jeito. Ela já pensou: 'ôba! Vamos fazer umas projeções de poemas nas paredes, etc. Mas não. O desafio da palavra crua. Mas que não fosse um recital convencional nem uma performance espontânea demais".
Carito conta ainda do desafio de Renata Mar se mostrar, se ler, além do queescreve - "que já é ótimo em seu blog" -, indo além do seu trabalho de produtora no Tropa Trupe. E Pedro Quilles, paulista radicado em Natal, "que sai do, literalmente, anônimo-mato em Pium (do seu Restaurante Magias da Terra, na Eco Vila Pau-Brasil) para mostrar em poesia oral suas novas raízes um dia desvairadas na paulicéia".
E Carito tenta descrever o indescritível: “O exercício deu o norte. A criação coletiva fez surgir o roteiro. Não tem outros recursos pós-modernos, mas também não é recital convencional. Não é teatro, mas tem linguagem teatral, marcação, etc. Não é música, mas tem ritmo, sonoridades, dinâmica. Não é performance, mas tem certa intenção nesse sentido. Uma experiência sensorial, com certeza. E tudo autoral. Nada de poemas-covers. Nada demais, nada revolucionário, a não ser a própria revolução que a poesia pode ser, para quem acredita nisso”.
Carlos Gurgel comenta a necessidade da poética palavra democratizada em novos formatos: "Fala-se em poesia escrita. Ainda pouco. Mas fala-se. Lê-se poesia, pouco. Mas lê-se. Assim como acessar blogs, livro adquirido em livraria. Que poderia ser mais. Que tal falar a poesia? Lê-la? Soletrá-la? Dizê-la? Tudo como um pensamento que valoriza o repertório de cada um. Poesia autoral. Um mosaico de revelações, desafios, confissões, alucinações e declarações de amor será mostrado".
Gurgel vem de uma geração que acreditou na poesia. Desde quando foi criada a Galeria do Povo, em 1978 e uma plêiade de artistas plásticos, poetas, músicos e atores se reuniam na Fortaleza dos Reis Magos para fabricar ideias e fundar o Festival do Forte. Época de quando a poesia era espelho, revelação. É o que o poeta deseja para hoje à noite: “Vontade de se ter um lugar, onde isso possa acontecer. Como um espaço que pulse, como um espaço que acolhe letras e bocas. Assim como um abrigo. E isso é tão bom. Sentir a poesia que pulsa. Que se mostra. Que quer ser dita. Toque de colher poemas. Como um espaço permanente, onde ela, a poesia, se mostra por inteiro”.
Espetáculo poético "Toque de colher poemas" Onde: Espaço Cultural Buraco da Catita
Quando: hoje, às 20h
Acesso Livre
Direção: Carlos Gurgel
Direção cênica: Cláudia Magalhães
Informações: (84) 9624.2707
* Matéria publicada hoje no Diário de Natal (AQUI)- Foto: Sérgio Vilar
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