segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A dura vida do cordelista da passarela

Das feiras livres de outrora brotavam cores, cantorias de violeiros e folhetos de cordel. Pessoas receptivas, sertanejas, perfumavam o lugar de tradição e cultura. O cenário onde Manoel Silva vende seus cordéis hoje é outro: caos no trânsito, cinzas de fumaça, barulho de buzinas e camelôs gritando a oferta mais barata. "Seo" Manoel é conhecido como o Cordelista da Passarela. Entre idas e vindas pela "ponte" de passageiros entre o Via Direta e o Natal Shopping, comercializa sua arte impressa em folhetins e encontra a rejeição da sociedade intolerante e apressada.

A passarela do shopping é o ponto fixo de venda do cordelista. É assim há seis anos. Diariamente, entre 18h e 19h, Seo Manoel está por lá. Oferece a um, a outro e tem dia de voltar pra casa onde mora com a mulher e o filho na Zona Norte sem nada. Há quem diga que escritor só vive do ofício quando é famoso. Seo Manoel sustenta a família com os cordeis. Vive no "aperreio" e na arte de escrever estrofes amparadasna rima e na métrica, tudo nos conformes e regras formais dos cordeis bem elaborados. A passarela é o ponto certo. Mas o périplo do cordelista é vasto e inclui bares e noites friorentas.

O trabalho começa pela manhã, nas escolas. Em algumas, diz ser bem recebido. Em outras, não. "É assim na vida, né?", pergunta, quase afirmando. A tarde é dedicada aos bares. Há os mais receptivos e de parada certa. Em maioria, comércios da Zona Leste até o cair da noite e o início do trabalho na passarela do shopping. A noite é longa e os próximos passos são pelo restaurante Conchin China, Continental do CCAB Sul e bares do entorno, até a última parada nos arredores do Praia Shopping. "Mais pra lá num dá certo. O povo num gosta de mim, não. E falta tempo. Só não fico a madrugada porque só tem ônibus até 11h40".

Manoel conta que as reações à abordagem são parecidas. Boa parte das pessoas sequer olha ou tratam com desdém. Poucos se interessam em pelo menos folhear o cordel. "Não peço esmola. Mas muitos se sentem perturbados. Hágarçons e donos de bares que acham a mesma coisa". O cordelista lamenta o episódio ocorrido no Shopping Cidade Jardim. "O guarda quis me botar pra fora. Uma senhora se levantou e discutiu com ele. Disse que estava ali vendendo cultura. E é mesmo", se orgulha.

Seo Manoel já escreveu para mais de 80 livretos. O mais famoso é o Baobá do Poeta, onde conta a história da árvore centenária adotada pelo poeta Diógenes da Cunha Lima, situada à Rua São José. "Doutor Diógenes me deu muito apoio ao comprar vários cordeis xerocados. Ricardo Matos e Cristine, também, quando deixam eu declamar poesia e vender cordel na Livraria da UFRN. Vender papel não é fácil. Tem dia difícil que não vendo nada. Em outros, vendo 15. Mas sempre escuto preconceitos, desatenção e má educação. Já são seis anos enfrentando a sociedade. Alguns acham que eu perturbo. Mas sou bem educado. Trabalhei como garçon vários anos e sei como me portar com o povo".

Segundo livro pede patrocínio
O cordelista tem hoje 61 anos. Nasceu em uma comunidade do município de Touros, como a maioria, muito pobre. Era perto do marco colonial chantado pelos portugueses em 1501. Terras praianas... "Eu tinha apenas 7 anos de idade quando as erosões eólicas me açoitavam furiosamente. Deus me deu a sabedoria para contemplar a imensidão dos céus durante a noite, e me inspirar nas cósmicas solidões de toda abóbada celeste". A praia, a história do descobrimento potiguar, a natureza e as tradições de Touros estão presentes na obra de Manoel Silva. Além da comédias e paródias presentes nos cordeis O Jumento Fastioso, Carro de Carapeba e Um Ladrão Ensebado Roubando na Escuridão.

Manoel chegou em Natal com 20 anos. A poesia vem de antes, nos rabiscos de papel em Touros. E o trabalho na roça e na pesca foi até essa data. Diz que a venda de cordeis já é a "terceira etapa" de sua vida. Durante 38 anos trabalhou como garçon de bares e hoteis, inclusive os mais antigos como o Ducal e os mais modernos, a exemplo do Imirá. "Meu primeiro livro de poesia popular e erudita publiquei em 1985. Mas desde esse tempo que escrevo o livro Meu Encefálico Segredo, que conta a história de minha infância e, por tabela, a de Touros, o ensino primário, as feiras, o marco, a história das caravelas no Rio Grande do Norte. Mas nunca arrumei patrocínio".

E nem prestígio. Sem dinheiro para transformar toda a criatividade e o talento em folhetos de cordel, Manoel enxerga desvantagem até nos eventos e feiras de turismo e negócio, quando cordelistas são convidados a expor seus acervos. "Sempre quem está ao meu lado tem mais cordel do que eu. O povo chega, vê minhas dezenas de cordeis, olha pro lado e vê as centenas dos outros. Aí vai pra onde tem muito. Então, até nesses eventos o jeito é vender andando, oferecendo a um e a outro, porque parado eu não faço negócio". E parados ficaram os 20 cordeis deixados na Siciliano do Midway. "Quando cheguei depois de um mês pra receber o dinheiro, tinham vendido só dois. A moça até perguntou se eu queria receber. Eu disse: 'Claro. Eu preciso, moça!'".

Publicado domingo no Diário de Natal (AQUI)

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